Tinha pena daqueles que não sabiam cozinhar. Sempre teve. Era triste saber que estes nunca desfrutaram dos planos que se faz ao mexer uma panela de pirão ou ao esperar um assado pedir pra sair do forno. Tantos eram os pensamentos embalados pela mescla de aromas de uma cozinha bem vivida e pela quentura de suas memórias; sonhos que podem brotar e crescer no fervilhar de um caldeirão de sopa.
Cresceu na soleira de uma cozinha pequena com paredes de barro vazado, localizada nos fundos da casa, quase do lado de fora. Sentada no batente da porta quando pequena, todos os dias ouvia as histórias contadas pela avó enquanto cozinhava. Eram conversas que não tinham fim, conversas que emendavam almoço e janta, emendavam um dia no outro; que traziam de volta os vultos que ela sequer pudera conhecer ainda frescos, com cheiro de café passado na hora. Eram sonhos, que começavam logo cedo, antes da lida dos homens, e seguiam noite adentro. Histórias que atribuíam significados a cada lanho nas panelas de barro, a cada cicatriz das canecas de esmalte barato e que, junto aos caldos e mingaus da avó, a fizeram crescer mais forte, mais preparada para o que viesse da vida. E muita coisa veio.
De tempo em tempo, vinha um ou outro viajante, fosse parente distante ou desconhecido fazendo passagem. Casa de roça na beira da estrada era assim: passava peão, caixeiro viajante e vigário migrando de paróquia, e à todos eles de nada custava um chá de erva colhida com um pedaço de bolo de milho. De noite, do lado de fora, chá mate e uma fogueira pra afugentar o frio dos mais velhos e fazer sossegar as crianças, que não eram poucas.
Conforme a mocidade foi chegando e os meninos puderam sair pra lida, dedicou-se às prendas da avó. Cozinhar era o que lhe sobrava naquelas terras de araucária… Era ver um dia sucedendo o outro, por entre o bafo das panelas que fervilhavam em cima do fogão. Café, almoço e janta… Café, almoço e janta… Café, almoço e janta,num ciclo feliz e rotineiro de quem tinha os pés no chão e a cabeça num porvir qualquer que não lhe pertencia.
Viu o tempo passar e muita gente deixar a roça pra ganhar cidade além do sul. Viu a eletricidade chegar sem pressa naqueles confins. Viu a mãe herdar o fogão da avó e, com mais algum tempo que passou, se viu recebendo de herança o mesmo fogão pra continuar alimentando as bocas que por ali passassem, fossem vindas do plantio ou da colheita, fossem varadas de fome ou exaustas de cansaço. Viu lhe chegar um marido cheirando a cachaça, trazido pelo irmão mais velho que insistia em ter pena de seu destino. Viu chegarem os três filhos: dois meninos pra ajudar o pai, e uma menina pra sentar no batente da porta da cozinha e ouvir suas histórias. Viu os três crescerem fortes e tomarem seus rumos na vida. Viu sua mão calejar, os fios brancos brotarem nas suas têmporas e sua pele enrugar… E sem arrependimento da vida que foi sua, nem dos dias passados no batente da porta da cozinha ou das noites ao redor da figueira, um dia, em oração, pediu ao Pai uma morte tranquila.
Assim foi. Quando a senhora de todos os destinos percebeu que seu tempo estava no fim, começou a rondar a casa e esperou que, entre o preparo de uma refeição e outra, ela se sentasse para descansar no batente da porta da cozinha. E a morte então chegou, alumiando a porta, com a candura da avó, impregnada do cheiro da avó, e com voz tão mansa quanto aquela que lhe contava histórias: “Vem, fia, que já é hora…” Ela levantou a cabeça e, com olhar cansado, sorriu de leve e lhe estendeu as mãos.