Sentado em uma cadeira desconfortável, corrijo a postura e suspiro antes de começar mais um jogo chatíssimo considerado como impossível. Ou melhor, descrito como “uma em cada mil pessoas vencem o desafio”.
Para ser sincero, não sei por que ainda tento e continuo nessas atividades tediosas que me dão sono. Minha mãe me disse dos riscos, mas nem ela mesma sabe com o que está lidando.Abro uma aba em meu computador e decido entrar nas redes sociais. Digito o login e a senha e pareço ser engolido pelo computador, a única luz que ilumina meu quarto até a porta. No corredor, uma faixa luminosa se exibe.
- Ok, vamos ver as aberrações – digo para o nada, esperando algo que me anime.
Rolando a página do Facebook percebo as fotos com sorrisos forçados e as expressões vazias. Novamente minha mãe veio em minha mente “Existe mundo lá fora” dizia ela a respeito das pessoas que passavam vinte e quatro horas em frente a uma tela. Não posso discordar, mas afinal, o que existe lá fora de tão especial que não possa ser explorado pela internet?
Olho para o relógio digital ao lado da cabeceira e visualizo aqueles números gigantes como se fossem meus inimigos. 5 horas da manhã. Novamente passo em claro mais um dia sem dormir. É uma sensação estranha ficar várias horas sem fechar as pálpebras: aquela dorzinha incômoda atrás dos olhos e a ânsia de vômito, mas com uma engolida seca e passos firmes me dirijo ao armário e tento não pensar no pior.
Já estava quase na hora de sair de casa e iniciar a rotina dos “incompletos”. Sim, eu ainda uso o termo proibido.Termino de me vestir e vou até a janela e abro as cortinas cinza chumbo. Lá fora, os resquícios de luminosidade pareciam tímidos e com medo. As árvores da pracinha logo abaixo dormiam silenciosas, suas folhas quietas e suas raízes crescendo ocultamente.
O Porsche estacionado em frente à sacada era um ponto vermelho vivo na penumbra e depois de dez segundos uma luz saindo da vitrola do andar abaixo iluminou uma parte da calçada. Minha mãe tinha acordado.A única coisa que posso fazer é esperar. Ela sabia que em dias frequentes aquele incidente sempre acontecia. Era só questão de minutos para ela subir as escadas e se deparar com o seu filho magro com os olhos inchados.
Escuto o ranger dos dois últimos degraus. Ela vestia um roupão fúcsia e segurava um cigarro na mão esquerda. Seu vício era algo que ela não conseguia largar. Seus cabelos negros, unidos em um redondo e apertado coque em cima da cabeça tinham um brilho seboso. Ela abriu a porta com dificuldade e roçou os olhos pequenos.
Fiquei ali, parado, como se tivesse criado raízes. Não queria explicar o que me manteve acordado à noite inteira, pois ela sabia perfeitamente.
- Progredimos em relação a sua última insônia – disse ela chupando a fumaça para dentro da boca.
- Sim, mãe. Três semanas normais até agora.
Ela olhou ao redor chutando algumas roupas jogadas e sentou na beirada da cama. Ainda sonolenta.
- Olha, eu sei que é difícil se acostumar com isso, mas você tem que fazer um esforço, filho. A que horas aconteceu?
- Três da manhã – respondi. Agarrei a mochila e a coloquei sobre os ombros - Da ultima vez não foi tão tarde. Progredi em três horas.
- Fico feliz por isso... Mas mesmo assim, você sabe que mesmo que não consiga dormir deve ficar na cama. Você exercitou não é?
- Sim – respondo envergonhado. – Desafios da internet.
- Adam eu já lhe disse! Quantas vezes tenho que repetir? Evite ao máximo...
- Eu sei, eu sei – respondo – Mas por quanto tempo ainda devo esperar? Já estou farto de ter que me controlar a cada minuto!
Rosane levanta e segura os lábios com força para não começar a chorar. Ela sabia da minha situação e que a complicação poderia evoluir e chegar a um terminal preocupante. Ela se sentia um peso morto quando não podia fazer nada que me ajudasse.
Por muitas vezes, expliquei a ela que só precisava de apoio e que não se preocupasse tanto, mas Rosane, ainda sendo enfermeira do hospital da região, não admitiria tão fácil a sua condição de telespectadora.
- É melhor você descer, vou preparar o seu café da manhã – disse ela já se dirigindo as escadas, deixando nuvens esbranquiçadas de nicotina.
Na cozinha, a mesa de quatro cadeiras jazia alguns pães e duas xícaras de café vazias. Os armários embutidos nas paredes estavam cheirando a naftalina e logo se acentuou quando Rosane abriu a portinhola para pegar os cereais.
O cheiro de ovos e bacon se sobrepôs aquele cheiro viciante quando ela esquentava a mistura. Ela sabia exatamente do que eu precisava para começar o dia.
- Isso me lembra do seu pai. Você não é muito diferente dele.
- Ele gostava de ovos e bacon? – pergunto me esforçando a memória para lembrar-se de sua fisionomia.
- Sim... E sempre chupava duas balinhas de hortelã para disfarçar o cheiro do café. Ah! Adam... Como ele faz falta, você nem imagina...
Meu pai tinha sido morto em um acidente logo depois do meu nascimento. Minha mãe dizia que ele era alto e magro, cabelos castanhos e de uma fisionomia de tirar o fôlego. Sua paixão, mesmo depois de dezessete anos, continuava vigorosa. De vez em quando, eu perguntava o motivo de não haver nenhuma foto pela casa.
Por mais que a herança estivesse presente nos quatro cantos da residência, as lembranças poderiam vir mais fáceis pelas imagens.
- Ele nos deixou conforto, parece até que ele está presente conosco, mesmo ele não existindo.
Rosane deixava cair os dois últimos ovos da frigideira em meu prato. Uma gota brilhosa surgia de seus olhos, caindo lentamente no roupão amassado. Finjo não notar e me concentro na comida. Encaro o prato de porcelana e espero o momento certo para falar.
- Seu pai foi um homem incrível. Nunca tinha conhecido ninguém igual a ele quando nós fomos a Limorins coffee's. Depois daquela noite dançamos a luz da noite e... Bem, não vou começar com a história de novo.
- Imagino que foi uma grande noite...
Olho para o cuco ao lado da geladeira e apresso em terminar a ultima fatia de carne. Rosane senta em uma cadeira à frente e apaga o cigarro. Enche uma xícara de café e torna a suspirar pausadamente.
- Está na hora da escola, mãe. Não se preocupe. Você não disse ontem mesmo que tinha a mim e era isso que importava?
- N-Não posso suportar outra perda Adam. Se eu te perder como vou viver nesta casa sozinha?
- Não pense mais nisso, olha, quando eu voltar da escola prometo que não vou exercitar nem procurar qualquer coisa estimulante. Fique tranquila, ok? Esta na hora de eu ir.
- Está bem – disse ela me dando um fino beijo no rosto. – Eu te amo.
- Também te amo.
Saio da cozinha com os nervos a flor da pele. O ar frio da manhã esfriava minha face e amenizava meu estresse. Caminho em direção à pracinha e ando lentamente, esperando ao máximo para iniciar as aulas. Minha vontade era de voltar e abraçá-la, estando a ponto de nunca mais soltá-la.
Certamente meu pai, o famoso Gordon Petrivic assassinado sem ter a chance de revidar, tinha um espaço no coração de minha mãe, assim como eu. Certamente Rosane não poderia suportar mais uma perda.
O motivo era muito óbvio. Eu tinha que me esconder para a minha própria segurança e daqueles que ainda me restavam. Não posso abusar da sorte. Tenho que me manter focado na normalidade e imitar as pessoas.Eu deveria guardar um segredo para sempre: eu sou o completo, aquele que tem a capacidade de controlar cem por cento das atividades cerebrais.