Íngreme e pendulo. Um amontoar de casas e vidas que se aglomeram na vastidão de um quadrante de terra. Antes barro, capim, cerrado. Hoje, pau a pique, madeira e uma ou outra de cimento e cal. Histórias, passados, antepassados que se interligam e formam uma espécie de corrente mundana natural. O que soma todas estas vidas? O que as multiplica, se as multiplica, o que o mundo fez delas para que se subtraíssem a uma parcela invisível? Os dias vão, os anos seguem... as vezes um feijão na panela, as vezes um copo de água barrenta para driblar a fome e aquietar as entranhas famintas por uma sucessão de três dias ou mais. Daqui da minha varanda são exatamente 12:39 pm, mas ali do outro lado da grade o tempo corre diferente, os ponteiros dão voltas para trás e nenhum rumo segue em viés a uma vitória. Hipocrisia essa a minha, dizer que fora desta minha fortaleza a vida de outras pessoas são diferentes da minha a ponto de só andarem para trás. Calunia! Injuria! Preconceito! Pois bem, me lance seus desapontamentos, teus julgamentos, tuas morais e costumes, mas antes de me crucificar no leito do desprezo, pare, pense, reflita, abra bem as retinas e observe o povo em volta, sinta o aroma da desigualdade e delicie-se com a divisão de classes... após estes breves passos, repense novamente os fatos e guarde no bolso este teu dedo apontador e julgador. Pois bem, agora deixe-me lhes contar uma brevíssima história.
Evaristo sai de casa às 5h da manhã, seja ela fria, chuvosa ou quente, não importa, pois seus filhos estão doentes, sem leite, as fraudas sujas, os pulmões cheios, o arroz em falta, o feijão num preço impagável, a mistura esgotada e a sua fiel companheira, Rosilda está a dormir na casa dos patrões durante a semana e só volta para seu lar para ficar com os filhos, abraçar e afogar a tristeza no braço do marido nos finais de semana, que é quando seus ‘’donos, digo, seus patrões lhe dão folga.’’ Evaristo, antes de sair pro batente, deixa seus três filhos com dona Vera, a vizinha, pede que lhe olhe as crias e os vigie de bom coração até que o mesmo retorne da labuta e traga algo para que eles encham as barriguinhas e não vão dormir mais uma vez com fome, ele mesmo nem se preocupa em alimentar-se, pois o que importa mesmo são os filhos, em primeiríssimo lugar.
Evaristo, sai em direção ao centro, pede uma carona de ônibus aqui, outra ali, até uma alma abençoada for com sua cara miserável e lhe ceder um breve direito ao transporte ‘’público’’. Evaristo, vai de comércio em comércio levando um sorriso, paciência e prestatividade, em busca de um ‘’bico’’, um emprego ‘’fixo’’, uma ‘’vaga terceirizada’’, ou um pedação de pão amassado e um copo d’agua quente, mas que sejam dados de bom coração. Evaristo, pede aqui, entrega curriculum ali, se humilha acolá, quase desiste por aqui... Quando não, o relógio já marcando 18:30, Evaristo encontra uma lanchonete na Avenida Rio Branco, que lhe cede um ‘’biquinho’’. O homem cansado, suado e faminto, aceita então, esfregar o chão, empilhar as cadeiras, dobrar as toalhas, lavar a louça, guardar os copos e botar os sacos de lixo cheios de sobras de comida, do lado de fora do estabelecimento. Após concluir sua missão, Evaristo pergunta a Roberto, que horas eram aquelas? Roberto diz: já é tarde, tá na hora de eu baixar essas portas, ligar pra minha mulher e dizer que eu vou chegar mais tarde de novo hoje, pois a lanchonete aqui tá cheia, acabou de chegar um pessoal jovem pra tomar uma cervejada!
– Mas, sr. Roberto, porque o senhor não vai direto pra casa, ficar com sua mulher, já é tarde e ela deve de tá esperando o senhor com a janta e tudo mais, porquê mentir pra coitada?
– Oras, quem pensa que é para me dizer o que devo ou não devo fazer de minha vida homem? De minha mulher cuido eu. Agora se apruma logo e pega ali aqueles salgados que restaram e leva embora e sinta-se bem pago pelos serviços prestados.
– Sr. Roberto, não foi isso que me falaram que eu iria receber quando vim até aqui mais cedo, me prometeram vinte reais, e com esse dinheiro eu ia levar de comer pra meus filhos que estão com Vera me esperando voltar pra casa, senhor.
Roberto, diz: Olha, o movimento aqui hoje foi fraco, não tem condição de eu te dar tudo isso não, e outra, eu não te prometi nada. Você leve esses salgados se quiser, vai matar a fome de todo mundo do mesmo jeito, não vai? E outra, vai saber se você ia levar alimento pra casa mesmo com esse dinheiro, quem não me garante que ia tomar de pinga ou se drogar? Só tem vagabundo por aqui, me pedindo ‘’bico’’ todo santo dia, depois que eu pago, esses vagabundos tudo vai no crack e na cachaça. Tudo culpa do PT, que fica acabando com nosso país alimentando esses vermes com bolsa família, esmolas e tudo o mais...
– Sr. Roberto, falo pra você. Eu sou honesto e direito, só fiz tudo o que fiz aqui pro senhor pra levar algo pra meus filhos em casa, e não preciso de mentir nem provar nada pro senhor. Mas não tem nada não, sabe. Vou levar esses salgados e dar pros meninos, agradeço o senhor por ter me dado essa chance. Espero que o senhor tenha uma ótima noite e que Deus o proteja, hoje e sempre.
Roberto, deu de ombros, abaixou as portas, passou a mão nas nádegas de uma mulher que passava por ali, perguntou quanto era o programa. A mesma ficou puta de raiva e com vontade de xingá-lo e agredi-lo, mas infelizmente precisava de dinheiro, tinha uma menininha de três anos e meio em casa, com fome e sozinha. Então, a mulher engoliu o descaso para consigo a seco, estampou um sorriso amarelo na face e disse: - Vamos ali meu bem, vamos conversar...
Evaristo, seguiu o caminho de casa, pedindo carona aqui, outra ali, até que conseguiu chegar em seu cantinho. Foi até a casa de Vera, pegar suas crianças, que já estavam a dormir, com as barrigas vazias, as lágrimas secas no canto dos olhos e a sonhar com um dia de amanhã menos sofrido. Evaristo, checa o relógio: 00:15 am. Come dois salgados frios e rançosos, guarda o resto para os filhos tomarem café da manhã. Toma um banho frio. Faz sua oração. Chora de saudades de sua esposa e lamenta pela miséria que o assola a porta. Deita-se e tenta descansar. Não dorme. O relógio então marca, 05:00 am. Hora de levantar e ganhar o pão de cada dia, mesmo que este o venha por meio de humilhação, descaso, desumanidade, desigualdade e intolerância. Afinal, ele precisa manter viva as outras vidas que o sistema ainda não levou.
Minha fortaleza tem comida na geladeira, tem água quente no chuveiro, tem internet, tem inúmeros livros, tem segurança, conforto, estabilidade. Mas, quem vê de fora essa fortaleza linda não imagina como é manter-se diariamente sobre estes pilares. Aluguel caro, contas, mais contas, suor, lágrimas, esforço, humilhação, dupla jornada de trabalho, se sujeitar a capricho de patrão, apanhar na cara, queimar a pele na beira do fogão, criar dois filhos sozinhos, sem pai, sem família, educar, ensinar valores e bons costumes, honrar o ser humano, não destratar os seus iguais, ensinar a ter caráter, não comer pra poder alimentar os filhos, não dormir pensando no que vai ter que se sujeitar amanhã para poder bancar esta fortaleza e dar um pouco de dignidade e conforto que nunca teve aos seus primogênitos.
É, Evaristo. É sociedade... não é porque hoje eu consigo ver a vida das pessoas um degrau a cima que eu não saiba o valor de suas vidas. Independentemente de ser do lado de cá ou do lado de lá das grades que separam as classes, ainda somos um único tabuleiro de xadrez com o estado prestes a nos dar, ‘’XEQUE MATE’’.