Grama Rala
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Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 18/10/16 17:25
Editado: 18/10/16 17:32
Gênero(s): Cotidiano
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 5min a 7min
Apreciadores: 4
Comentários: 1
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Palavras: 845
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Notas de Cabeçalho

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Capítulo Único Grama Rala

Desperdiçava seus dias ásperos sentado com o rosto colado na janela de madeira carcomida. Surgiam manchas negras no corpo quando tentava socializar com as pessoas do mundo real. O mundo imaginário dele era sua casa. E naquelas paredes sem reboco da periferia de São Paulo, ele nunca imaginava poder ser um homem engravatado e de barba cheia. De manhã, a dona da casa mexia uma omelete na frigideira esperando que a cria acordasse. Seria ilógico dormir mais que três horas por noites, os suspiros vis das buzinas enraivecidas das latarias na avenida e o trote do metro não o deixavam.

Desejava com todas suas forças que seu primeiro dia no trabalho não fosse repetitivo, e, para não se atrasar, abocanhou a omelete. Não podia ser repetitivo cortar a grama de um empresário, podia? Charles, o empresário, Sr. Charles para o Clóvis, administrava uma empresa de fastfood; era seu maior fascínio ver pessoas gordinhas.

Acordava com um charuto na boca e o jornal debaixo do braço sempre, e, sempre, dizia aos seus empregados: Cortais uma excelência, pois só assim poderei eu recompensar deveras. Clóvis, entendendo nada daquele linguajar formal, acenava; e tão pouco poderia, o relincho do aparador impedia; desconhecia a potencia da máquina.

O que de principio lhe parecia uma atividade insignificante foi dificultando-se depois dos primeiros dez minutos. Havia sim, um histórico gordo de pessoas que se assustavam com tamanho gramado; alguns olhavam e desistiam de cara. O gramado exalava uma vontade exuberante de viver; podia o preto infeliz varrer a frente da casa toda, mas sempre sobrava grama em algum canto. Clóvis deu uma pausa, talvez não por estar cansado ou bravo, mas sim porque no bairro sujo donde provinha não nascia uma grama tão alta e verdinha.

O tempo gasto no trabalho de cortar a grama só valia a pena por causa do irmão doente, a mixaria que ganhavam naquele gramado vinha mais da avareza do empresário do que do resultado dos pretos que ali suavam. Clóvis cobriu a fronte da casa com um olhar fatigado, desejando que a natureza fosse infrutífera; não na apenas na casa do Sr. Charles, mas na porra do centro todo. Enquanto seu irmão definhava num colchão encardido e sem molas, o Sr. Charles escravizava outro pobre igual a ele. Mas que a casa portava uma fronte bonita, isso era.

O aparador, que já estava enfartado de grama, esfumaçou no rosto do Clóvis. Destampou o Gtx2000L a fim de esvaziar; pôs a mão no compartimento, e, ligado do nada, engoliu poeira e joaninhas. Sucumbiu a raiva e decidiu que não retornaria lá. E, ao fim da tarde, Sr. Charles pagou cinquenta reais e um doce ao negrinho pelo serviço.

Nunca vira um negrinho que cortava grama tão bem quanto aquele que estava a sua frente. Então lhe fez a proposta que ganharia dez vezes mais se vigiasse a filha depois da tardinha; hora que a menina chega da escola particular. Uma jovem corpulenta e danada, por isso um preto podia lhe por medo. Clóvis, esquecido da raiva, apertou a mão enluvada do patrão, e lhe desejou boa noite. O chefe meneou a cabeça, tirou a luva, e, quando o moleque havia se perdido de sua vista, arremessou a luva na lixeira.

No outro dia, tardinha, entrava o mulato na mansão e saia o patrono. A moçoila lia Shakespeare, mais precisamente, Macbeth. Clóvis que nunca lera nem história em quadrinhos apenas dedicou-se a admirar a senhorita de camisola. Um corpo enquadrado e cheio de curvas, uma poesia de carne e osso; ele repetia mentalmente a palavra poesia sem compreendê-la; e quanta carne tinha naquelas coxas burguesas.

Por um longo período de dez minutos, sentou sua bunda numa cadeira retro de madeira gasta, mas assento confortável. E apesar da menina-mulher possuir tal beleza, Clóvis não podia ficar sentado sem fazer nada. A menina-mulher, desconcentrando-se com a inquietude do rapaz, solicitou que ele fizesse qualquer coisa sem ser remexer-se grosseiramente na cadeira cara do seu pai. Mas o que poderia ser? Um copo de água, solicitou a filha do empresário. Quando este a serviu, ela tocou aquela mão áspera e enorme; e que sensação deleitosa que a mão de um negro lhe causava.

Golou a água enquanto secava o negrinho, que tentava se acomodar na cadeira. Marcou o livro com uma moeda, abaixou a camisola que travara na coxa, e subiu para o segundo andar; para se ensaboar pensando no empregado negro do pai. Clóvis assegurou seu emprego ao ficar parado e não seguir a filha do patrão. Poderia dar prisão, qualquer coisa com negro dá merda. E, recebido seu salário, partiu para farmácia e comprou o remédio para o irmão.

Medicou o pobre do maninho, e foi se lavar. No espelho, babou o dedo e esfregou várias vezes a fim de tirar uma mancha preta que nunca saia. Levantou a pata para o espelho, e, quando ia quebrá-lo, um pelo marrom sobrepôs a mancha preta. Sim, estava um dia mais próximo de virar homem, para poder ser engravatado, e usufruir de branquelas e um gramado infinito. Gramado, sim, gramado.

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Apreciadores (4)
Comentários (1)
Postado 29/10/16 12:04

Eu gostei, mas de fato é bem chocante em alguns pontos. :D