De repente acordo e não estou mais em minha cama de dossel dourado e límpido como ouro. Vejo-me deitado sobre pedras rústicas, no chão de um castelo sem janelas, olhando para um teto que parece ser feito de sangue e que a qualquer momento se derramará em mim. Não sei como, mas sinto que a noite se alastra lá fora, ao redor do castelo.
Tento me lembrar de como vim parar aqui. Permito-me revirar toda a minha mente, mas não encontro nada que justifique minha presença naquele local. Há apenas silêncio, que apesar das estranhezas do local, causa em mim certo torpor.
Sinto-me tentado a andar pelo castelo com a intenção de explorá-lo, como se isso pudesse me lembrar do porque de estar ali.
Levanto-me do chão, onde até então permanecera, e busco uma porta que possa me tirar dali. Viro-me para todos os lados e vejo retratos cujas imagens não consigo decifrar, mas que me causam repulsa e um frio na espinha. Então a encontro, uma pequena porta de madeira. Ando até alcançá-la e no cominho encontro pedaços quebrados de algo que parece ser um espelho. Fico um pouco amedrontado e passo pela porta o mais rápido que consigo.
Ao entrar na próxima sala, deparo-me com mais um lugar sem janelas e quadros horríveis, e percebo rastros de sangue que seguem em direção a uma escada. Não sei como e nem por que meus pés me fazem segui-lo. Degrau por degrau fui levado a subir a escada, e quando cheguei ao topo senti algo quente em minhas mãos. Olhei para baixo e, aterrorizado, percebi que eu estava coberto de sangue. Não pude conter o grito de horror. O sangue que escorria pela escada estava sobre mim, e não sobrara nenhum centímetro de pele ou de minha elegante roupa negra que não estivesse coberto por aquele fluído pegajoso e quente. Naquele momento eu me lembrei de tudo. Lembrei-me do pedido que havia feito ao Senhor dos Mortos, para que a me entregasse de volta.
Sinto a mesma dor lancinante que senti antes, quando a criatura fundiu seu corpo ao meu. Senti como se estivesse me deitando em brasas. Lembro-me de suas palavras me dizendo o que fazer com as inocentes pessoas que agora vejo, nitidamente, no sopé da escada para tê-la de volta. Recordo-me de suas almas se apagarem em seus olhos a cada facada que eu dava, e do prazer que aquele ser que se entranhava em mim, sentia.
Quando essa medonha visão sobre o que me tornei cessou, tive a certeza de que nunca mais voltaria ser o que fora, e que jamais teria minha amada de volta. Nesse momento, lembrei-me de mais um detalhe: os estilhaços de espelho. Quando me olhei no espelho e aquela estranha criatura se viu refletida pelos meus olhos, fugiu como se ver seu reflexo lhe causasse uma grande dor. Foi quando o espelho se quebrou e eu fiquei desacordado.
E então, uma ideia se forma em minha mente. Volto correndo para os estilhaços que vi antes, ajoelho-me no chão, agarrando uma parte bastante afiada. Decido que encontrarei minha amada Lea de qualquer maneira. E cravando a lasca em meu coração podre, penso nela e nas coisas horríveis que fiz, desejando ardentemente que meu amor ainda me ame. Enquanto discorro sobre as vidas que ceifei, sinto meu próprio corpo paralisar... E com lágrimas quentes nos olhos sigo ao encontro de Lea, sussurrando uma única palavra: “Perdão!”.