Naquela noite repleta com a típica garoa paulista, a estagiária Fabíola estava mais que apavorada enquanto descia do vagão do metrô, mal conseguindo vencer os degraus rumo à saída com seus passos trêmulos e o constante arrepio na espinha lhe fustigando sem cessar. O esporádico, todavia robusto bater de dentes gerava um som bem característico que resumia com terrível perfeição o nível de seu descontrole emocional.
Tinha que se afastar dali. TINHA.
Em todos os seus dezenove anos, nunca havia se deparado com algo tão bizarro: em suas mãos delicadas, jazia uma folha de papel sulfite que um desconhecido careca, de estatura alta, pele amarronzada e trajes comuns deixara cair ao se trombarem na entrada do Metrô. A maldita folha dobrada que ela apanhou por educação, abriu e leu por curiosidade e se arrependeu de ter tocado aquilo por puro horror.
A loira baixinha e de corpo avantajado amassou e jogou fora aquela abominação textual, mas as palavras ali descritas ainda assombravam sua mente enquanto a garota meio que corria para longe do recinto, vez ou outra olhando para trás. Querendo ou não, o hediondo manuscrito se repetia nítido e nefasto em sua cabeça:
"Crème Diabrulée
Ingredientes:
- 01 ser humano com diabetes
- 01 caixa de creme de leite
- 01 garrafa de tequila
- 01 pote de chocolate em pó
- metade de 01 limão
Modo de Preparo:
Arranque o coração do ser humano, de preferência com o mesmo consciente para que as substâncias químicas oriundas da dor, adrenalina e pânico realcem o sabor final. Com o músculo cardíaco ainda batendo, esprema o mesmo dentro de uma tigela de alumínio contendo uma dose generosa de tequila. Misture devagar até obter uma calda homogênea. Goteje um pouco de sumo de limão, acrescente o creme de leite e torne a misturar vagarosamente até que o líquido engrosse e adquira uma tonalidade peculiar semelhante à pele necrosada.
Neste ponto, adicione uma camada considerável de chocolate em pó sobre o líquido e flambe de maneira intermitente o centro da tigela pelo lado de fora até que uma crosta se forme entre a cobertura e a mistura devido à reação dos ingredientes quando aquecidos desta maneira. Tome cuidado com a distância e a intensidade da chama, guiando-se pelo aroma: quando estiver adocicado, intenso e abundante, o ponto correto foi atingido.
Ao contrário da sobremesa original, a iguaria deve ser consumida ainda quente (juntamente com o coração utilizado no início, se preferir), para que os nutrientes sanguíneos sejam plenamente degustados em união com a essência dos demais ingredientes. Fornece de uma a duas porções.
Ps: outros orgãos pequenos com grande fluxo de sangue (como o fígado, por exemplo) funcionam igualmente bem e alteram o sabor do prato, variando ainda mais as opções de degustação. A única premissa indispensável é a presença de altos níveis de glicose a médio ou longo período no ser humano a ser preparado."
Um instante depois de acabada a lembrança, Fabíola estava vomitando a fatia de bolo de cenoura e boa parte da Coca-Cola à beira da calçada, debruçada de modo nada elegante perto de um orelhão.
O trajeto da estação para casa nunca foi tão longo, aflitivo e surreal para a pobre garota, que se arrepiava e orava em pensamento enquanto seus olhos esverdeados buscavam de modo frenético por quaisquer indícios de que estivesse sendo seguida. Contudo, foi só impressão paranóica; havia decorado bem a fisionomia feia daquele homem por conta do esbarrão. Além disso, ele saía e ela entrava do vagão quando o desgraçado encontro se deu. Ainda houve a questão da locomoção imediata do veículo, da presença dos demais passageiros. Quem garantia que se daria conta de onde e quando perdera aquele degragante e inumano ensinamento gastronômico.
Não, seria impossível ele a perseguir atrás da "receita" ou mesmo cogitar com quem de fato a portava. Todavia, por precaução a moça até mudaria o itinerário para o cursinho depois daquilo.
Só havia ela, a rua quieta do bairro de classe média, os postes de luzes alaranjadas e a garoa forte quando Fabíola finalmente adentrou seu belo imóvel, a respiração ofegante chegando a lhe incomodar.Trancou a porta mais rápido do que o de costume e respirou fundo, aliviada. Fechou os olhos, rindo nervosamente: um louco havia cruzado seu caminho! Precisava beber alguma coisa para relaxar e, quiçá, esquecer aquela loucura toda.
Seria até uma bela e tenebrosa novidade para postar no grupo do Whatsapp quando a vibração ruim passasse, teorizou por um segundo. Arrepiou-se. Deixou para lá tão estúpida ideia. Não contaria nem mesmo para aquela sua amiga escritora que gostava de relatar daquele tipo de histórias macabras em suas obras naquele site das tais fanfics. Manteria a memória daquele insidioso evento somente para si mesma até o final de seus dias.
Passou como um raio pela sala e pelo banheiro, rumando para a bonita cozinha. Tinha orgulho de ser independente e fazia questão de morar sozinha. Mas, naquela noite, um pouco de companhia não seria de todo ruim. Acendeu a luz, já pensando em quem chamaria para dormir com ela. Deus, como era bom estar na segurança do seu próprio lar! Chegou a assoviar uma alegre canção ao se dirigir para o bebedouro quando estacou no lugar, o suor gélido do medo brotando instantaneamente em sua face incrédula.
Uma garrafa de tequila, uma caixinha de creme de leite, um pacote de chocolate em pó e metade de um limão estavam impecavelmente dispostos sobre a pia.
- Sabia que muitos brasileiros desconhecem ser portadores de diabetes, senhorita Fabíola...? - indagou alguém atrás com um timbre psicopata de arrepiar a alma.
Aquela voz estranha foi a penúltima coisa que a estagiária ouviu. A última foi seu próprio grito abreviado enquanto o invasor de olhar meio inclemente, meio empolgado lhe golpeava o crânio com uma velha e chamuscada tigela de alumínio...