Nossa pequena Ana está estranha, desde aquela noite, Doutor. O senhor sabe como eu me preocupo com ela, coitadinha, tão inocente, tão inocente, Doutor. Tão linda. Ela mal começou a caminhar, Doutor e, mesmo assim, desce do berço, todas as noites. Nós deixamos as portas abertas, dentro de casa, todas elas, para podermos ouvir qualquer coisa, se ela tossir ou... Mas então ela consegue passar. Eu não sei como ela desce do berço. Não. Não sei, Doutor. Você não acredita em mim, não é?! Deveria dormir comigo uma noite dessas. Não, não assim. Eu não sou veado! Deveria dormir na minha cama. Então você veria como ela vem. É estranho, Doutor. Todas as noites. Ela sai do berço, não sei por onde. Ela atravessa o corredor, sem barulho. Isso é estranho também. Ela não cai, ela não se bate, ela vem como se flutuasse. Não, eu não acho que ela flutua, Doutor. Pelo amor de Deus, eu não sou louco, está bem? Eu disse “como se!”. Não de verdade. Quer que eu continue ou não? Então. Ela vem. E quando vejo, no meio da noite, ela tá parada ali, do lado da cama. Os olhos fixos em mim. Ela não sorri, ela não fala “papa”, ela não chora, ela não faz nada. Só me olha, sem parar. Na primeira noite, eu falei com ela. Eu disse, “vem com o papai”. E ela continuou sem rir, sem fazer nada. E ela não é assim, Doutor. Ela sempre vem comigo, sempre sorrindo. Ela só continuou parada, como se fosse sonâmbula, como se estivesse hipnotizada, eu não sei. O senhor entende? Na segunda noite, eu tentei falar com ela de novo, tirar ela daquilo. Mas espera. Eu estava falando da primeira noite, né?! Então, eu peguei ela no colo, levei ela de volta. Sim, de volta pro berço, pra onde mais? Eu deitei ela lá, pus o bico na boca, cobri. Não, ela não dormiu. Os olhos dela continuaram em mim. Eu amo ela, Doutor, é minha filha e tudo, eu amo ela, mas juro que aquela noite fiquei com medo. Me deu um arrepio. Eu não fiquei lá. Pode me chamar de covarde, mas eu voltei pro meu quarto. Acho que ela dormiu sim. Não ouvi nada, não vi mais nada. Naquela noite, pelo menos. Na segunda noite, ela veio de novo. A mesma coisa. E assim foi, todas as noites. Eu já não durmo. Eu só deito e fico de olhos abertos, esperando o momento em que ela vai chegar. E tem piorado, doutor. Antes ela só me olhava, inexpressiva. Minha Aninha, Doutor, eu tenho tido medo da minha Aninha. O senhor sabe o quanto isso é triste pra um pai? Agora ela tem sorrido. Toda noite. Mas não de um jeito normal. De um jeito... estranho. Eu não sei explicar. Mas umas coisas têm passado pela minha cabeça. Não. Besteiras, doutor. Eu prefiro não dizer. Não, eu prefiro não dizer. Não... Tá bom. Eu li umas coisas, na internet. O senhor já ouviu falar do bebê-diabo? Não me olha assim. NÃO ME OLHA ASSIM! Viu, é por isso que eu não queria dizer nada. Eu sabia que ia ser assim. Eu sabia. Eu sabia porque não é pro senhor que ela fica olhando e rindo, todas as noites. Todas as malditas noites. Eu não durmo mais, doutor. E é minha filha! Eu só quero amar minha filha, doutor. Mas eu não consigo. Não consigo. Sim, esse bebê diabo é o de São Paulo. Saiu nos jornais na época. Eu não lembro, foi em 63, 64, alguma coisa assim. Na internet tinha até foto. Eu sei que não é a mesma coisa. Aquele já nasceu com pelo, com rabo, falando. Não, não é isso. É besteira. Mas eu não sei explicar. E eu não sou louco, doutor. Pelo amor de Deus, eu só queria continuar amando minha pequena, minha Ana. Do jeito que era no começo. Sem isso de ela ficar vindo no meu quarto. Sem isso de sorrir no meio da madrugada. Me dá arrepios, doutor. Foram 27 reportagens, naquela época. Se ele tivesse mesmo nascido em 63, estaria com que idade agora, Doutor, 53, 54? Quantos anos o senhor tem? Não, eu não quero dizer nada. É só que... é estranho. O senhor conhece a minha mulher? Não, nada, eu não estou imaginando nada. É só que... Eu preciso da sua ajuda com a Ana. É grave, isso pode ser grave? O senhor faz ideia do que ela pode ter? Todas as noites. Sempre. Os dois olhos brilhando no escuro, o sorriso sinistro. É minha filha, pelo amor de Deus! EU PRECISO DE AJUDA! Ela precisa de ajuda. A Ana, minha pequena, doutor. Ela é minha filha. Eu não posso ter medo da minha filha, Doutor. O senhor precisa me ajudar, ou então me indicar um padre, eu não sei. Eu estou desesperado. Todas as noites. Sem falhar nenhuma doutor. Eu tentei dar banho de água benta nela. Eu coloquei um crucifixo no pescocinho dela. Arrebentou, doutor. Estava em pedaços no berço. E ela do lado da minha cama. Há algumas semanas eu comecei a trancar a porta. Não. Não adiantou. Ela continua vindo. Eu não sei como ela faz isso. Eu não sei como ela chega até o meu quarto. Minha mulher? Ela não diz nada. Ela nunca diz nada. É como se ela estivesse participando disso. Ela só fica deitada, parada, sem se mexer. Se eu pergunto no outro dia, ela diz que não viu nada. Que eu devo ter sonhado. Que a Ana dormiu bem e dormiu a noite toda. Não, doutor. Eu não sei. É sempre o mesmo riso. Sempre os olhinhos brilhando, como se ela soubesse de alguma coisa, como se tivesse algum segredo. Todas as noites, Doutor. Sim, sim, todas as noites, desde aquela em que eu as matei.