Acostumada a trazer pra beira dágua cação e sargaço, conchas, e saco plástico, a maré naquele dia se cansou.
E despejou na areia o que sobrou de Sebastião.
Já branco e meio inchado de água, andava jogado de qualquer jeito, comido de peixe, com a barriga aberta e vazia de tudo, igualzinho ele fazia com o seu pescado.
Mas Sebastião usava uma faca, cega de vez em quando. E quem fez aquilo usou as mãos, ou as patas, que Deus me perdoe, mas foi coisa de gente não.
O velho não foi o primeiro, mas foi o último. O último morto daqui do povoado até que alguém tomasse as providências.
Foi mais ou menos um mês. Era noite alta já. Diz que Da Guia tentava costurar as camisas velhas do marido com a luz da lamparina, quando escutou as galinhas perturbadas no quintal. Quem cria galinha sabe que aquilo é um bicho agoniado mesmo, não adiantava se alarmar por qualquer confusão.
Foi o que ela pensou, antes de apagar a chama com um sopro e se deitar.
No outro dia acordou agoniada, com uma aflição no peito. Sem coragem de ir no quintal.
Mas se levantou de pronto com o grito do marido por Deus.
Nem bem chegou na porta...
O galinheiro era um amontoado de madeira e pena, só o senhor vendo. Banhadas, lavadas em sangue. As galinhas todas, todinhas, espalhadas pela metade, pisadas, na areia daquele chão sujo.
Aquele foi o começo. Porque dali a uma semana, Seu Antônio, dos porcos, escutou uma zuada no curral. Quem cria porco sabe que aquilo é um bicho calmo, não se alarmava por qualquer confusão.
Seu Antônio diz a ninguém não, mas ele olhou no olho da imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, pregada na parede e ela disse que ele não se mexesse da cama.
Porque do lado de fora se espalhou um uivo que não era de cachorro nem de raposa.
E foi assim. Começaram dando falta de galinhas, depois porcos, cachorros e, por fim, gente.
A primeira foi Dora, meio fraca do juízo, que andava mendigando por peixe e dormia na areia, mas não perturbava ninguém não, coitada.
Encontraram no outro dia, com um medo no rosto que ninguém, ninguém que viu os pedaços do corpo vai esquecer. Na noite em que ela morreu, os berros correram por tudo quanto era rua, mas a gente, acostumado aos repentes da doida, demos muita trela não.
Até que fomos encontrando, os pedaços pela areia.
O senhor já encontrou o pé de alguém, assim, indo e vindo na onda do mar?
Eu já.
Aquilo alarmou - se de um jeito. Só o senhor vendo.
Juntaram os homens todos e correram a praia de alto a baixo em busca de uma resposta. Acharam foi nada.
Até que se meteram dentro dágua e trouxeram um cação meio grande. Disseram que tinha uma mão de mulher dentro da barriga do bicho.
Entre os que viram que não era e os que não viram que era, aceitaram que o peixe tinha comido Dora, porque a gente quando quer acreditar nas coisas, não tem quem faça, é tiro e queda.
Dali pra frente tudo se acalmou num susto, naquela tranqüilidade que sempre aparece antes das desgraças. Compraram mais galinha, mais porco, e vez por outra alguém sentia falta de Dora. Até que ela foi esquecida, junto com a história.
Mas a lua grande chegou, trazendo peixe, trazendo água.
A lua grande chegou, levando o menino de Conceição.
Foi um susto, um momento de noite em que ela entrou pra buscar o mingau. E acabou-se o menino.
Os restos do inocente foram encontrados dali a uns dias. Mastigados por cachorros já quase pra dentro da mata.
O marido de Conceição matou os cachorros.
E Conceição se perdeu dentro dágua, pra nunca mais voltar.
Dali a cidade, parece que enlouqueceu. Todo mundo se juntou na praça da televisão e decidiu ficar acordado esperando o bicho aparecer, rondando atrás de alguma pista.
Mas bicho é esperto, Doutor.
Era passando os dias e o aperreio crescendo. O povo se recolhia já de tardinha, com medo de perder seus parentes.
Qualquer nadinha era castigado.
Que o diga Seu Pedro, coitado, recluso que nem uma freira; amarelo, com aquelas unhas grandes de violão, se lembra? Pagou com a vida a tuberculose galopante. Diz que levaram pra um passeio de jangada e sangrado sem pena. Jogado pra dentro dágua, teve a chance sim de nadar até a beirinha, mas quem disse? Mar aberto e sangue. Desse, sobraram nem os ossos.
O mais engraçado, é que, no meio daquela desgraça, as pessoas, nem as mais velhas, se apercebiam. Ninguém prestava atenção na lua que cobria quase todo o céu.
Até que se encontraram.
Foi sexta-feira, agorinha. Deu uma doida no prefeito e ele achou melhor não adiar a festa da padroeira. O povo, com medo sim, mas cansado também de tanta morte e precisando da ajuda da santa, aceitou.
E por sete dias, tudo voltou ao que era. Um festival de bandeiras, vestido novo, missa; parecia que o satanás nunca tinha colocado as patas no povoado.
Até o último dia.
O senhor sabe como é essa coisa de bebida, Doutor. Um golinho vira dois e uma garrafa vira água. O povo vai amolecendo e deixando o medo, banhado em cachaça, ir embora pra bem longe.
E alguém teve a idéia de levar a festa da praça pra beira do mar. Aquele mesmo mar, que levou tanta gente.
E o pior é que não aceitaram?
Num momento as barraquinhas, as bandeiras coloridas e os carros de som tavam todos na beira d´água
E se dançou, se festejou até a boca da noite.
Até que alguém viu um cachorro preto de longe, numa agonia danada, vindo desembestado.
O som tava alto, mas o peso do bicho era tão grande, e o seu ódio tão firme, que se ouviu tudo.
Se ouviu, mas o que faltou foi o tempo de correr.
Num instante tava no meio da festa. Endemoniado, Doutor, voou pra cima de quem podia. Pegou primeiro foi a filha do vereador, de uma dentada só. A gente podia ouvir a zuada do osso quebrando, espirrando sangue o corpinho, cada vez que o danado sacudia aquele monte de carne que já era a menina.
Os homens que sobraram ainda atiraram, mas foi pior, porque o bicho pegou um por um. Sem pressa. Os que correram e os que ficaram, foram tudo parar no bucho do danado...
Desses só sobrei eu, Doutor. Que fiquei em pé, mesmo com as pernas tremendo. Esperei o bicho comer de um a um. O senhor já ouviu uma pessoa pedindo pra não morrer? O senhor já viu o medo que a pessoa fica no olho?
Eu já, Doutor.
Depois de rasgar todo mundo, parou mesmo em minha frente. Eu ainda escutava o povo gemendo em pedaços na beira da praia, misturado com aquele abafado do barulho das ondas do mar.
Meu Deus, Doutor.
O bicho voou pra cima de mim, mas eu tive tempo de fazer o que eu vinha preparando fazia era tempo.
E joguei a roupa dele na fogueira. A roupa véia que ele abandonou quando ainda era gente.
Foi o pano estalar na fogueira e ele voltar a ser gente.
Como fosse assim uma pessoa desmanchando um castelo de areia.
E o olhar, lhe digo, era mais triste ainda.
Ainda mais pra mim, mãe de sete, Doutor.
Sete com ele.
Ajoelhado em minha frente o bichinho tava cansado, só você vendo.
E que mãe gosta de ver o menino assim?
Foi culpa dele não, acredite em mim. Foi não.
“Tu quer?”
Ele perguntou mesmo assim pra mim.
E que mãe, Doutor, que mãe deixa o filho sofrer assim, eu pergunto ao senhor em nome de Jesus.
Eu disse que queria, queria sim.
Que mãe não ia dizer sim se pudesse ficar pra ela com um sofrimento do filho?
É por isso que eu tô aqui. Vim ficar aqui na delegacia com o senhor. Quero ficar nessa cela aí do fundo. Peço em nome de sua mãe morta, Zezinho. Quem pede é a mulher que te viu, que te fez nascer, menino!
Pode me trancar e jogar a chave.
Porque hoje é noite de lua.
E eu acordei com uma sede, com uma fome, que não tem bebida nem comida que acalme.