Nota seis: Nunca dormir antes da uma da manhã.
Naquela cidade que todos adoravam pelo simples fato de adorarem, todas as famílias que lá compravam e vendiam, para cuidar de outras futuras famílias, sempre recebiam como sucessoras duas crianças gêmeas, um menino e uma menina, que assim que cresciam ajudavam seus velhos pais a deitarem e os divertiam com viagens caras e desnecessárias; sempre foi assim e nunca deixou de ser.
Agrela e Dogrilo nasceram do útero da família Amarela, tendo seus cordões umbilicais cortados pelas mãos da mesma. Os dois dormiam e acordavam no mesmo quarto, este era grande, e todas as manhãs a única empregada arrumava-o, se ela não o fizesse os gêmeos nunca cairiam no sono, eles foram mimados e criados sobre a mesa de uma família rica, e a empregada sabia disso.
Certa noite, escura como todas as outras que subiram ao céu já abandonado pela luz, Agrela e Dogrilo foram colocados na cama muito cedo, isto gerou muita revolta nos dois, que se recusaram a piscar por todo o resto noite. Na manhã seguinte, a empregada abriu a porta do quarto e vislumbrou os gêmeos em pé sobre a cama, com os olhos vermelhos quase saltados para fora; ela, brava como era, avisou os dois que se não dormissem nem uma hora durante o dia, o Amordecredo iria ensinar-lhes uma lição que os fariam se arrepender de não ter obedecido a empregada. Agrela e Dogrilo, mimados como foram criados, passaram o dia inteiro brincando no quintal da casa dos Amarelos, demonstrando que não se importavam com qualquer coisa que a emprega os dissesse.
À noite, dessa vez muito mais negra e assustadora que a do dia anterior, a empregada os mandou para o quarto e se ofereceu para fechar a porta deste, ela foi puxando a maçaneta muito devagar para provocar um ranger no chão que era arranhado pela porta; quando o silêncio retornou ao quarto, a empregada sussurrou alto com o intuito de os irmãos escutarem:
- O Amordecredo odeia o gemer do chão – E a porta se fechou muito rápido.
No momento que o bater da porta fez um eco por todas as quinas do quarto, uma criatura pálido, na beira do albinismo, entrou ferozmente pela janela, há quebrando em milhares de mais milhares cacos de vidro, e caminhou até a frente da cama onde as crianças dormiam; o monstro parecia ter mais de três metros, ele tinha um crânio enorme, muito maior que o resto do corpo, seus braços eram curtos e suas pernas extremamente longas, o tronco era pequeno, dando um aspecto similar a um aracnídeo à criatura. Seu cabelo era liso e comprido, preto e bonito. Agrela e Dogrilo se espantaram com o pulo que o monstro fez da janela, suas peles se esbranquiçaram, os deixando mais assustadores que a própria criatura. O Amordecredo subiu na cama e engatinhou lentamente até o meio das duas crianças, pesando o cobertor, ao chegar perto dos rostos aterrorizados dos irmãos, a criatura jogou para o lado sua longa franja, esnobando seus olhos atentos e grandes, e disse com uma voz rouca e calma:
- Escutem com muita atenção, há partir deste nosso encontro noturno, toda vez que vocês ousarem abrir os olhos depois da meia noite, vocês me enxergarão na frente desta cama, os observando por toda a madrugada e manhã. Então, é melhor que vocês mantenham as pálpebras fechadas por todo o resto desta noite, e que tratem de dormir depois que a lua chegar ao topo do céu, se não eu voltarei a aterrorizá-los.
O Amordecredo, depois que fechou a sua espessa boca, pisoteou os cacos de vidro e saiu pela janela.
Na manhã seguinte, a empregada preparou um gostoso café da manhã para Agrela e Dogrilo, e tratou de levar a eles, que ainda dormiam em suas camas. Quando esta abriu a porta, mirou de canto a janela quebrada e fingiu não ter percebido, ela se sentou na ponta da cama e largou sobre o cobertor a bandeja com o desjejum. A empregada cutucou os pés dos gêmeos e forçou algumas frases de bom dia. Os dois, ainda pálidos, negaram abrir os olhos.