Os mamilos maculados de bege espalhavam a tinta no centro da tela ao mesmo tempo em que a única mão da pintora dançava à direita, tingindo todo o espaço branco com a palma suja de um vermelho escarlate. Naturalmente ruiva e sempre com os fios presos numa trança até a cintura, ela esticou a longa perna esquerda pra alcançar uma lata de tinta verde e fez com que a sola do pé áspero beijasse o fluído. Sem parar com o braço direito e o movimento circular dos seios, Rúbia Lima Balázs foi acrescentando suaves pisadinhas verdes à obra. O corpo seminu, velado apenas pela calcinha de seda e uma tênue penumbra, se movia ao ritmo de Beethoven. Corpo este que era o pincel principal e tinha os membros, inferiores e superior direito, como pincéis biológicos secundários; Trabalhando com precisa coordenação motora e artística, com a única exceção da mão esquerda, amputada após um acidente vivido pela mulher de vinte e cinco anos e de ímpares íris caramelo-mel.
Ao recuperar-se e definitivamente conseguir não mais depender dos medicamentos tarja-preta, a artista encontrou uma maneira de reinventar a sua arte, o dom que herdara do pai, que, assim como o antebraço esquerdo dela, foi levado da vida da humana no dia da explosão no avião. Vinda de Manaus para Belo Horizonte, a amazonense começou a trabalhar compulsivamente desde que pisou à capital do Estado mineiro no início daquele setembro chuvoso e soturno de dois mil e sete. Alojou-se na casa de uma tia, cunhada do falecido pai, temporariamente, até poder se ajeitar. O sonho de ter a sua arte espalhada pelo país foi multiplicado pelas promessas do empresário que a moveu de seu refúgio; Sonho que construiu regrado e regado pelas influências e ensinamentos paternos; sonho que a mãe sempre fez questão de desmanchar e de tentar, sobretudo, fazer com que a filha deixasse o mundo das aquarelas de lado e desse mais valor à descendência e dons ciganos. Entretanto, Rúbia não nascera pra iludir as pessoas atrás de uma mesa de tarô e ou interpretar os sonhos, como a sua mãe. Era isso que pelo menos a ruiva pensava até quando teve sua primeira crise aos onze.
Os médicos diagnosticaram epilepsia, mas Cássia sabia que eram os enxergues de um futuro incerto ou até mesmo de um passado insistente e, apesar dos protestos de Jarbas, a cigana insistia que o marido tentava negar os dons que a filha obtivera como legado de seu povo nômade. Após a separação dos pais, Rúbia o escolheu e cresceu com o mineiro de fios escuros, causando desgosto na mãe e alegria naquele. Mas as crises ou visões continuaram e a pintora tinha as suas dúvidas sobre elas, até um dia ter um desses anormais devaneios com o pai. Guardava ela, ainda em sua memória, a pior de suas crises epiléticas ou de suas visões precógnitas: a vez em que previu, de alguma forma, o acidente que matou Jarbas, queimou e destruiu quase todo o braço esquerdo dela e a jogou em um poço de aparentes tristezas sem fim... Porém Rúbia cansou-se de suas pequenas mortes diárias após o desastre e, ao acordar um dia com a esperança renovada, apoiou-se em suas melhores memórias que construíra ao lado do pai e seguiu o conselho mais importante de Jarbas: o de aprender a domar o medo e usá-lo em benefício próprio.
Foi assim que ela se reinventou, escalou as frias paredes escorregadias do fosso da depressão e venceu as aparentes barreiras que a impossibilitavam de continuar como pintora, pois o seu talento, a princípio, estava na canhota. Rúbia redescobriu o seu corpo e começou a pintar telas gigantes o utilizando como pincel; Telas que representavam vislumbres desfocados das visões que tinha de quando em quando. Assim ela recomeçou a subir os degraus da vida. E foi assim que o olhar intuitivo do empresário mineiro caiu sobre a pintora amazonense de uma só mão, dona de sua própria e original arte; a sua pintura íntima.
As chamas das velas, únicas fontes de luz na galeria, bruxuleavam lambidas pelo vento com cheiro de chuva que invadia a espaçosa sala pela janela do décimo oitavo andar do Acaiaca. A mão direita de Rúbia continuava a bailar, espalhando tinta vermelha pela tela dois de altura por três de largura; Os mamilos logo pararam o movimento e o outro pé mergulhou em uma lata de tinta preta após o pé esverdeado fazer um sutil deslize breve e cessar. Rúbia então parou de pintar quando Moonlight Sonata chegou ao fim, apertou stop no computador pra poder encerrar o programa de música e tomou distância para perscrutar a arte…
E foi nesse exato instante que o celular tocou, e ela decidiu atender antes de se concentrar nos retoques finais do futuro quadro.
— Alô! — Sua voz saiu meio cansada.
— Rúbia, minha querida, já é meia-noite e nove. ‘Cê não vem pra casa hoje de novo? — A voz de sua tia soou preocupada do outro lado da linha.
— Meu Deus, tia! Nem vi o tempo passar.
— Posso ficar despreocupada então?
— Desculpe tia, eu não queria…
— Tudo bem, eu compreendo… é o seu trabalho.
— Olha, ahn, eu vou dormir aqui na galeria, como na noite passada. Não se preocupe… E eu prometo que ligo para a senhora da próxima vez que isso acontecer.
— Só acho que ‘cê tá ficando muito concentrada nessas suas pinturas, querida.
— Sim tia… e estão ficando ótimas. Eu preciso terminar a tempo para a exposição de sexta.
— E o que pintou hoje?
— Eu…
E então um repentino silêncio, quando finalmente fitou a tela.
Ela sabia que a visão com a tia, naquela manhã, havia sido estranha e também um tanto confusa, pelo fato de não ter conseguido distinguir o que era a mancha escura bem ao lado do corpo da senhora caída ao chão. A mancha negra que a ruiva, por um momento, pensara ser uma sombra, como houvera há pouco pintado utilizando o pé direito, era na verdade a figura dum revólver apontando para a cabeça duma mulher de óculos quadrados, pintada de bege pelos mamilos da talentosa artista.
— Rúbia?… Está aí?… Querida?
Mas Rúbia Lima Balázs não conseguiu responder à tia e, por reflexo, somente foi capaz de levar a sua única mão à boca, assustada tanto pela nova pintura quanto pelo trovão que ecoou lá fora, deixando o centro da cidade em trevas. Não fossem as chamas tremeluzentes das velas e a luz branca do visor do monitor, a galeria cedida pelo empresário também seria completamente engolida pela escuridão lúgubre que caíra, como um manto de sombras, sobre aquela melancólica noite primaveril de três anos atrás.