Tem uma corda no teto da sala de aula, ela parece uma corda de forca.
Tem dois alunos discutindo no corredor, tem uma aluna de fones de ouvido sentada na escada, tem um faxineiro varrendo o terceiro andar, tem um professor procurando as chaves do carro, tem um supervisor no primeiro andar observando o grupo mandado para fora da sala por causa de conversa. Tem uma moça que chora no banheiro, tem um rapaz que se encara no espelho e tem eu, que olha essa corda pairando do ventilador até o meio da lousa.
Tem uma motocicleta estacionada na frente da casa, ela parece usada.
Tem uma mulher andando de calçada em calçada vendendo vassouras, tem quatro crianças jogando bola na rua paralela, tem um casal passeando com o cachorro, tem uma rapariga descansando embaixo da árvore, tem um adolescente trancado no quarto, tem um homem caminhando, tem adultos no bar conversando, tem um idoso sentado na esquina com a neta no colo. Tem a sensação vazia de tudo acontecer em outros bairros, tem o ar que preenche a casa vazia a não ser pela menina que encara a motocicleta estacionada em frente ao portão. A motocicleta tem dois capacetes, a menina pergunta se o motoqueiro pode dar-lhe uma carona.
A baía de Vitória nunca pareceu mais feia que naquele dia nublado, o mar parecia óleo, o céu tinha cor de petróleo.
Tem uma menina que se agarra às costas de um estranho enquanto eles atravessam a ponte, tem uma cidade cuja vida noturna é quase nula, tem pessoas transitando nas rodovias, nas calçadas, praças e avenidas, tem sorrisos e tem lágrimas, tem pessoas dormindo, tem pessoas acordadas, tem pessoas de todas as cores, idades e tamanhos, pessoas que sabem quem a menina é e pessoas que nunca ouvirão seu nome. Tem essa menina que desce da moto e estende uma nota de cem reais para quem a levou até lá, o dinheiro que recebeu da avó de aniversário. Tem o motoqueiro que segura a nota larga e azul-claro, tem seus olhos que fitam a menina acompanhando o andar dela até a beirada da ponte e ali ficam parados, esperando.
Sempre há um olhar comovido quando as pessoas ouvem sobre as tragédias na Terceira Ponte. Poucas pessoas sabem que a taxa é maior do que a mídia apresenta, porque o número é tão alto que corre o risco de encorajar quem pensa em fazer o mesmo. Todos sabem, porém, que toda semana no mínimo uma pessoa é engolida por aquele mar concreto de sentimentos e despojos de cidade grande, não necessariamente da forma menos dolorosa.
Tem a menina que agora sai da cidade, os cem reais no bolso e as mãos agarradas às costas do desconhecido. Tem as lágrimas que rolam por seus olhos, mas não sei se é alívio ou terror pelo que quase fizera. Tem a moça que está na frente do computador escrevendo baboseiras, tem o aluno que copia o dever de casa, tem o empresário que grita ao telefone, tem a mãe que se ajoelha na capela, tem o rapaz que cambaleia por ruas vazias, tem o homem que abraça a esposa na cama, tem a vendedora que contabiliza o lucro, tem a criança que acorda de um pesadelo. Tem o motoqueiro que se esforça para não nublar os olhos e derrapar o veículo, tem a menina que cede ao desespero e abraça os ombros cobertos de couro, e tem eu, que está de pé em cima do tablado da sala encarando a corda a bailar de acordo com a brisa inexistente.
A corda continuou na sala de aula.
Ninguém mais consegue vê-la.
Aconteceu quando o céu se tingiu de negro.
A chuva caiu, viscosa como petróleo.
O dia tinha gosto de neblina.
Meu uniforme tem tom azul cobalto.
Eu gostava da cor azul.
Hoje eu só vejo petróleo.
A cidade nunca pareceu tão bonita.