hora azul
A vida é tão curta que,
Quando percebemos,
Já é noite, chove e
Esquecemos de tirar a roupa do varal.
- Cláudia Gomes
Eu percebia que havia algo diferente em mim a partir do momento que a conheci. Eu era a poetisa, ela era aquela que dominaria os seis continentes. Eu imortalizaria sua essência para que não fosse esquecida nas vidas além-dessa, e ela mostraria a mim como eu deveria viver tal que meus restos orgânicos não fossem decompostos em vão.
Choveu hoje à noite, e ela estava deitada no meu colo, falando com a maior naturalidade que eu esqueci minhas sapatilhas de balé penduradas no quintal. Eu disse “foda-se”, e o orgulho dela foi tão grande que ela se aconchegou melhor nas minhas pernas.
Libertarmo-nos do que nos causa dor é o primeiro passo para ter uma vida plena.
o zênite
Ser o fim desta energia
Ser um corpo de prazer
Ser o fim de mais um dia
- Tiago Bettencourt
Para ela, devíamos aproveitar tudo o que há de ser oferecido, e fazê-lo da melhor e mais proveitosa maneira. Eu anotei seu discurso nas notas do celular, até chegar certo ponto em que joguei o aparelho na bolsa e puxei-a pelo pulso até estarmos na beira do lago da praça central.
Se devíamos exercer uma vida sem arrependimentos, o melhor é fazer do presente uma alegria efêmera que objetiva durar mais que alguns segundos. Abracei-a, e ficamos abraçadas até um ganso grasnar de dentro da água.
O valor do riso não pode ser explicado por lógica ou retórica. O sorriso dela tem mais valor que as riquezas de qualquer soberano da Antiguidade.
o crepúsculo
If earth was heaven and now was hence,
And past was present, and false was true,
There might be some sense
- e. e. cummings
O prazer é algo que deve ser perseguido como ápice da felicidade humana, e ela não dizia isso como algum tipo de metida a filósofa hedonista.
Estávamos na biblioteca nesse dia, terminando de ler “O Apanhador no Campo de Centeio” pela terceira vez naquele ano, quando ela retirou um livro da bolsa de lona e estendeu-o para mim. Peguei a preciosidade perguntando-me o que significava. “Meus escritos não são suficientes?”, perguntei enquanto folheava aquela antologia em inglês original.
Ela nada respondeu, logo, desfoquei o olhar de um poema em especial e fitei as esmeraldas encrustadas em sua palidez inumana. Ela era tão linda, mas encarava-me como se eu fosse a joia mais reluzente de um baú transbordando moedas de ouro. Balançou a cabeça, voltando a sorrir, e recitou a poesia da página que eu havia deixado aberta.
Ainda não descobri, até hoje, se ela deixou a voz rouca de propósito. Talvez quisesse demonstrar como o prazer não estava apenas no carnal, mas também em pequenas obras como as curtas poesias do autor americano.
a madrugada
Do pó vieste e ao pó retornarás.
Genêsis 3:19
Dizem que, ao apaixonar-vos por um escritor, a morte nunca vos alcançará.
É mentira, a morte chega para todos, e que se dane a mensagem metafórica da frase.
Não há misericórdia na morte, mas não deveria ser surpresa que, após uma vida regada pela busca por prazer e felicidade plena, Manuela Cândida Vargas faleceu em um dia primaveril, abraçada a meu livro de crônicas e poesias supostamente inacabadas. Os cabelos azuis se estendiam pelo sofá puído, seus lábios sorriam como se sonhasse comigo voltando para casa e os olhos verdes estavam fechados. Não tive coragem de abri-los. Eu tive pesadelos naquela noite.
hora dourada
Por fim, somos sombras voltando ao estado sólido de pó.
Ainda escuto The Killers em sua homenagem, e continuo achando que o prazer espiritual é mais forte que qualquer desapontamento que se tenha no plano físico. Minha Magnum opus foi concluída enquanto Cândida ainda estava viva, lendo minha alma com suas pedras de jade, enquanto recitava suas teorias distorcidas e condicionava ambas ao mundo da decadência e deleite.
Hoje é impossível encontrar alguém que não tenha ouvido ou lido sobre a célebre Manuela Vargas, nome que a própria odiava, mas fiz questão de colocá-lo para que nunca saibam quem ela é de verdade. Talvez eu seja a única com as lembranças verdadeiras de quem ela foi, mas ninguém está interessado no autor quando a obra é tão mais intrigante. E, honestamente, é melhor assim:
Ninguém precisa saber que, no fim, todos somos sombras reduzidas ao pó, não importa a grandiosidade ou mediocridade.
[Aproveitou a vida, honey?
No fim não há diferença entre os seres,
então o faça enquanto lhe é permitido.]
- Manuela Cândida Vargas,
diálogo com Alexandrina Rodrigues de Melo.