Vejo-o ler atentamente os versos em suas mãos. Ora os olhos estão arregalados, ora eles demonstram reprovação. Em alguns instantes, seus lábios soltam murmúrios inaudíveis, seguidos de uma expressão facial de contenda.
Ele segura a última folha das vinte que estavam presentes no manuscrito. Tendo conhecimento dos versos que ele tem em mãos, relaxo o corpo na cadeira, enquanto trago um cigarro novo. De fato, sei que arrumei briga com o Diabo, mas o que posso fazer? Não tenho culpa de ser revolucionário.
O bar em que estamos está vivo, com indivíduos indo e vindo, trazendo em mãos copos de vinho tinto. Eles são a platéia perfeita! Um público mais nobre que este ainda está para ser gerado no ventre de uma santa.
Após arrumar os papéis, Stéphane fita-me profundamente. Parece que algo está entalado em sua garganta e juro estar vendo fogo em seus olhos (repito, este homem é o Diabo enrustido), estou pronto para receber meu veredito.
— Não posso crer no que acabo de ler. Quanta audácia, Mário! Nem posso mais chamar-te de poeta. Olhe só estes poemas sem métrica! Por onde anda tua sanidade, homem? — Ele toma um gole de vinho, mas parece continuar engasgado. — Não vejo beleza nestas obras! Céus, não entende o significado da frase "arte pela arte?". Estes versos fariam o Sr.Bilac morrer em desespero! Andas bebendo demasiadamente? Santa Tríade Parnasiana, não posso crer!
Entre a vontade de gargalhar e o desejo de dar-lhe uma resposta, decido tragar profundamente o resto do cigarro. Deixo que este diabo descarregue seus comentários.
— Quer saber o que penso? Isto é influência de meios externos! Quem diabos o levou a escrever isto? Estrutura em verso livre? Tornar objetos ícones literários? Linguagem coloquial? Valorização do cotidiano? — Ele se levanta como se uma agulha estivesse perfurando suas nádegas e grita: — ISTO É UM ULTRAJE!!!
Todos do bar olham para ele, curiosos. Perfeito! Tenho a atenção que precisava para fazer meu grande pronunciamento. Hoje o mundo conhecerá o novo movimento literário que mudará os rumos da poesia. Hoje, farei história.
Deposito o cigarro no cinzeiro, ponho-me de pé e esclareço a dúvida nos olhares alheios:
— Senhores, de fato, este cavalheiro não tem posse de suas faculdades mentais. Cultivem a postura deste poeta parnasiano enquanto podem, pois, após isto tornar-se livro — Ergo meu manuscrito. — O mundo vai aderir o Modernismo como amigo. Sabe-se bem que há muitos anos, os parnasianos cultuam a estética, a metalinguística, um alto rigor técnico, mas acima de tudo, poetizam sobre uma burguesia já morta! Por que devemos ignorar a realidade de nosso povo? Por que excluir de nossa poesia os que sofrem e que pouco possuem? Stéphane, compreenda, o poeta não pode ser frio e indiferente a emoções. Não se deve valorizar somente a objetividade poética, a técnica e a imparcialidade. Abra teus olhos, o mundo moderno chegou!
Um silêncio ronda o bar. O olhar de Stéphane sobre mim seria capaz de devastar cidades. Ele respira, inspira profundamente e diz:
— A poesia deve criar algo belo. Ela deve ser o portal para a fuga desta realidade. Jamais o Parnasianismo ira aderir tamanha loucura! Quando aprender sobre a significância dos atos passados, procure-me. Caso contrário, fuja para o espaço! Senhor Mário de Andrade, passar bem.
Antes que Stéphane saia do bar, pronuncio alto:
— O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir, caro Stéphane Mallarmé. Cuidado ao utilizar exageradamente o nosso amigo hipérbato.
Ele bate fortemente a porta. Todos os redor começam a aplaudir. Sinto-me realizado, pois uma nova geração de poetas vem por aí e eu serei o gatilho que impulsionará este ato.
Sinto alguém tocando meu braço. Ouço ao longe meu nome...
— Sabrina...Sabrina ...
— Mais cinco minutos, estou com sono. Tenho que... que desafiar os parnasianos e...
— DEIXE DE DIZER BOBAGENS, MENINA!
Acordo num pulo. Minha mãe está parada ao lado de minha cama, enquanto eu sinto uma baba escorrendo de minha boca. Olho para o relógio, são 13:30.
— MÃE! Por que me acordou agora? Eu só vou levantar 14:30!
— E você acha que eu não sei? Você estava gritando feito louca enquanto dormia. Dizendo que era Mário de Andrade, que traria o Modernismo pra cá, e quem diabos é Stéphane? Tenho pena, pois tu gritou como louca com esse pobre homem.
— A aula de literatura de hoje afetou meu cérebro, eu acho.
— E os meus ouvidos! Acalme-se, foi tudo um sonho.
Minha mãe sai de meu quarto em direção à sala, enquanto eu permaneço sentada em minha cama, desfrutando do solene sentimento de ter sonhado algo tão nobre. Pronuncio em voz baixa, antes de voltar a dormir:
— Em outra vida, fui Mário de Andrade.