Pela primeira vez em muito tempo, fui a um restaurante acompanhado. Nos sentamos e o garçom veio nos atender, com o cardápio em mãos. Folheei algumas páginas e fiz meu pedido:
— Eu gostaria de comer essa piranha de protetor solar, com esperma condensado em cápsulas e cinzas de cadáver banhado em placenta de aborto com mijo, se não for pedir muito.
Olhei por sobre o cardápio. O garçom me fez uma expressão indescritível. Marisa parecia assustada e constrangida por algum motivo.
— O senhor quis dizer uma galinha ao molho pardo, acompanhada por arroz à piamontese e farofa de ovo?
— Isso aí — confirmei e voltei ao cardápio.
— Excelente pedida — disse de forma automática. Virou-se para Marisa, anotou seu respectivo pedido e foi para a cozinha.
— Puta que pariu! — exclamei, tirando outra vez o olhar do cardápio. — Eles servem diarreia de escravo aqui! Deve ser uma delícia. Precisamos experimentar um dia.
Marisa torceu os olhos e mostrou os dentes como quem fazia força pra cagar. Tive a impressão de ver alguém vomitando na mesa do lado.
— Cleiton, por que você não pode simplesmente falar feijoada como qualquer pessoa normal?
— Mas é nosso primeiro encontro… Eu queria te impressionar.
— Assim?
— É.
Por alguma razão, um silêncio tomou conta. Marisa parecia se perguntar o que fazia ali, saindo comigo. Ora bolas, eu era um cara legal! E o fato de não ter saído com ninguém antes dela por cinco anos foi só um golpe de azar. Meu charme raro devia causar medo nas mulheres, com certeza. Era assim na adolescência também.
— Então, o que você faz da vida? Disse que estava no ramo de crianças. O que exatamente isso quer dizer? — Marisa perguntou com certo receio, bebendo um pouco d'água.
— Ah, sim! Bem, foi uma ideia revolucionária que tive. Tenho uma microempresa chamada Violentando Valentões, que atende crianças vítimas de bullying. Por um preço super acessível, elas podem contratar um de nossos agentes especializados (na verdade, "agente", no singular. É uma empresa pequena, então, por enquanto, sou o único funcionário) pra dar um jeito nos seus problemas, se é que me entende.
— Meu deus, que horror! Você agride crianças como profissão?!
— É basicamente isso — Tirei o olhar de Marisa e folheei o cardápio outra vez. — Elas podem, inclusive, escolher como querem que o serviço seja feito. Ataques físicos com mãos nuas, com barras de ferro, tacos de basebol e até com pequenos cortes e furos com facas e tiros de raspão. Ou então ataques psicológicos, como ameaças constantes, perseguições e traumas permanentes. Ou os dois. E, dependendo da complexidade, uma taxa extra é cobrada, e…
Vi que Marisa parou de falar. O que será que havia de errado?
— Há algo de errado?
Ela me olhava horrorizada. Será que havia algo estranho no meu rosto? Droga, eu me preparei tanto pra tornar aquele momento especial!
— Você…— meu deus, ela vai falar que meu rosto está sujo, que vergonha. —… Está pagando nosso encontro com o dinheiro que extorque dessas pobres almas violentadas?! — Ufa! Me preocupei à toa. Meu rosto estava impecável, afinal.
Limpei a garganta e respondi:
— Na verdade, não. Como falei, é um negócio pequeno, então ainda não me dá muito lucro. Moro com minha mãe e ela me ajuda com eventuais despesas, tipo nosso encontro.
Marisa ficou em silêncio outra vez. Dava para vê-la respirando fundo, hesitante e incomodada. Parecia pensar bem no que ia dizer. Por fim, falou:
— Você… é um solteirão de quarenta e cinco anos que ainda mora com a mãe e é sustentado por ela?
— Sim, por quê? — ouvi um barulho de pratos se aproximando. — Oh, olha. O garçom está vindo aí.
O garçom voltou, ajeitou as bandejas na mesa e foi embora parecendo sentir pena da mulher que me acompanhava. Pude ouvi-lo dizer algo como "era preferível morrer que estar na companhia daquele babaca". Ia falar algo em resposta, mas preferi ficar na minha. Vai entender esses garçons.
Marisa só comeu e não fez nada pra puxar assunto. Mal olhava pra minha cara. Não consegui entender o por quê. Será que havia algo de errado? Tirando a ofensa do garçom, tudo parecia tão perfeito. O ambiente, a comida, a conversa, nós dois… Talvez fosse minha vez de falar.
— Você tem gatos e faz tricô? — perguntei.
— Errr… — ela olhou pra mim, bastante desconfortável. — Tenho um gato. E devo ter algum material disso lá em casa, mas… Por que da pergunta?
— É que minha mãe adora gatos e tricô. Talvez esse seja um bom assunto para vocês terem quando ela chegar.
Mordi um pedaço da piranha de protetor solar e Marisa cuspiu fora a comida. Meu deus, que porquice! Que deselegância! Pensei que ela tivesse mais modos.
— "Quando ela chegar"? O que você quer dizer com "quando ela chegar"?!
— Ela já deve estar chegando. — não entendi o porque de tanto espanto e continuei comendo, agora um pouco da placenta de feto com mijo.
— Peraí, deixa eu ver se entendi: você convidou sua mãe para o nosso encontro?!
Acenei com a cabeça, mastigando aquela saborosa porção de cápsulas de esperma. Logo em seguida, avistei mamãe, vindo em nossa direção:
— Mamãezinha! — gritei pelo restaurante e todos olharam para nós. Marisa se encolheu embaixo dos panos da mesa. — Mamãe, essa é Marisa, a garota de quem lhe falei!
— Oh! — mamãe exclamou, do jeitinho todo especial que só ela sabia. — Você gosta de tricô e gatos, minha filha? — ajeitei uma cadeira para que mamãe se sentasse ao lado de Marisa, para que tivessem grandes e emocionantes conversas e virassem as melhores amigas. — Obrigada, meu filho! Sabe, menina, no meu tempo…
Deixei as duas conversando em fui ao banheiro. Fiquei lá bem uns dez minutos e, quando voltei, encontrei Marisa inconsciente e estirada na mesa, com mamãe gritando enquanto alguns garçons a seguravam.
— Ai, seu filho cretino! Por que não me avisou que ela era um deles?! Essa vadia veio direto da Alemanha Nazista, e tenho certeza de que foi ela quem encabeçou o projeto Die Glocke! Do passado, veio ao futuro para acabar com minha vida, por eu não ter finalizado aquela peça de tricô pra sua tia Margarete! Me soltem, seus nazistas marcianos viajantes do tempo!
Quando Marisa acordou, vi que seus dois dentes da frente estavam quebrados e que havia uma colher enfiada em seu nariz. Acho que ela também não me enxergava muito bem, com todo aquele sangue na cara.
— Meu deus! Muito obrigado, Marisa! Nunca vi mamãe tão feliz! Mas ainda acho que eu deveria dar os remédios pra ela, porque senão ela extrapola… Além do mais, com esse sangue escorrendo de você, tá realmente parecendo uma galinha ao molho pardo! Eu adorei!
Marisa ficou parada me olhando. Algo além do sangue escorreu dos olhos dela, mas eu não sabia dizer se era lágrima ou pus. O garçom que estava nos servindo se aproximou:
— Com licença, senhora. Eu sei que esse talvez não seja o melhor dos momentos, mas, enquanto sou garçom, também sou empresário. Tenho uma microempresa de um funcionário só (no caso, eu) que atua no ramo de assassinatos. Somos especializados em morte e encobrimento de companhias que não deram certo no primeiro encontro. Por um preço super acessível, a senhora pode, inclusive, escolher o modo como gostaria de se livrar de seu problema. O que acha?
Marisa cuspiu alguns dentes soltos e gargalhou como louca. Não esperei para ouvir sua resposta. Corri pra caralho, deixei mamãe pra trás e nunca mais a vi. Devia ter morrido pelos nazistas marcianos viajantes do tempo e entrado no céu dos gatos e tricôs com tia Margarete, quem sabe. Nunca me importei em saber. Também nunca mais vi Marisa ou a cor daquele garçom ou restaurante de novo. Apenas torci para que meu próximo primeiro encontro fosse melhor daqui a cinco anos. Meu charme raro realmente causava medo nas mulheres, com toda a certeza. Foi assim nos últimos quarenta e cinco anos e, bem, era difícil se livrar de uma característica tão inigualável.