Já era o finalzinho do plantão extendido de Marlene, uma jovem atendente da central da Policia Militar que vinha se destacando no setor pela competência e comprometimento para com seu trabalho. Ela realmente amava o que fazia, pois seu desejo de ajudar as pessoas era genuíno e intenso. Por vezes ela fazia horas extras mesmo nos dias de folga, sem nunca reclamar do valor relativamente baixo pago ou o stress que sua função impunha. Não era o emprego dos seus sonhos, mas foi através dele que descobriu como fazer a diferença.
Uma nova chamada. A última do turno. Depois, seria obrigada a parar e ir para casa. Atendeu.
— Alô? Por favor, por favor, me ajuda tia... — era uma voz feminina e chorosa de uma infante a sussurrar nitidamente apavorada do outro lado da linha. — Ele tá procurando a gente...
— Calma, meu anjo. Por favor, tente ficar calma. A tia vai te ajudar. Calma. — respondeu de imediato a atendente, com uma sensação horrível arranhando seu estômago. — Qual é o seu nome? O que está acontecendo?
— Sou a Monique... Mamãe mandou eu pegar o Gui e me esconder. O papai... — a garota fez um esforço colossal para suprimir o choro naquele momento. — E-Ele machucou ela com o revólver. Eu fiz o que me ensinaram e liguei pra você, tia... Me ajuda! Por favor!
Aquelas palavras rasgaram o coração de Marlene em um milhão de tiras. Por mais que fosse treinada para lidar com pessoas em situações de tensão, nenhuma simulação a prepararia para algo daquele nível. Se controlando ao máximo para passar segurança à menina, Marlene pediu com o máximo de jeito e urgência possível que Monique lhe fornecesse o endereço ou alguma referência que pudesse usar para encontrar sua casa.
— Eu não sei o nome da rua, tia... Mas sei os números. É dois, um, sete e zero. — explicou a infante meio soluçando e em um tom de voz angustiantemente baixo. — Fica do lado da padaria com uma rosquinha gigante.
— Tudo bem, a tia sabe onde é. Por favor, não desliga, tá bom? — respondeu Marlene com certo alívio, enviando as informações digitadas velozmente no computador para o despachador do batalhão da PM responsável por aquela região. O código 121 foi igualmente informado. — Monique, continue quieta e escondida. A ajuda já...
O som de pancadas em uma porta cessou a frase e a pulsação mais tranquilizada de Marlene. Com os estrondos advindo da violência dos baques, seguiu-se um choro agudo e altíssimo bem como os pedidos desesperados de Monique para o irmãozinho ficar quieto ou o pai deles iria achá-los.
— TIA MARLENE, MEU PAI TÁ AQUI! — exclamou a menina sem mais conseguir se controlar, pranteando alto junto com o bebê em seu colo já que não podia calar o bebê. — ELE VAI MACHUCAR A GENTE COM A ARMA!
Marlene, que havia ativado o modo Viva Voz sem querer no calor do momento, gritou para a menina pegar o irmão e sair dali. Monique disse que não dava e pediu socorro de novo para aatendente, destruindo muito do rigoroso condicionamento mental da atendente e fazendo com que a mesma se sentisse uma incompetente e inútil. Logo, pode-se discernir claramente que uma porta havia sido arrombada e passos vagarosos de alguém usando botas se misturando com crianças chorando em uma cacofonia de deixar o próprio Diabo orgulhoso.Todos na central puderam ouvir nitidamente Monique implorar aos gritos por clemência ao pai e, um instante antes de ter seus apelos negados/ignorados, clamou "não machuca o Gui, pai! Não machuca o..."
Três tiros encerram o pedido e a vida da menina.
— NÃO! NÃO! PÁRA, SEU FILHO DA PUTA! PÁRA! — gritou Marlene à plenos pulmões e em total desespero ao levantar-se da cadeira, enquanto o chocante áudio parecia ecoar no recinto. — PELO AMOR DE DEUS! AINDA NÃO RASTREARAM ESSA PORRA?! — vociferou a atendente policial em um misto de pranto mal-contido e autoridade.
Os gritos de Monique cessaram, enquanto o choro de Gui prosseguia de forma contínua e potente. Marlene esmurrou a mesa, incapaz de conter as lágrimas e a fúria, bem como o sentimento de impotência com o escabroso ocorrido. Em seguida, alguém de voz masculina, baixa e rouca falou "alô" no celular.
— SEU FILHO DA PUTA! SEU MONSTRO! — vociferou Marlene, chegando a salivar enquanto falava com o olhar marejado e injetado. — NÓS VAMOS ACABAR COM A SUA RAÇA, SEU DESGRAÇADO DO CARALHO!
— Ei, ei... Calma. Vai ficar... Tudo bem agora. — exclamou o desconhecido com uma apatia palpável e assustadora. — Não se preocupe. Ainda tenho duas balas... Pra duas pessoas. — era possível ouvir o som das sirenes não tão distantes ao fundo junto com o prantear do pequeno Gui.
Marlene sentiu como se o coração gelasse e parasse naquele segundo que pareceu infinito. E no outro... Um estampido ressou na sala de atendimento, fazendo com que o choro infantil cessasse abruptamente. Em seguida, outro disparo se seguiu e o último som que todos ouviram conforme Marlene desabava na cadeira em absoluto estado de choque foi o de algo caindo e se esfacelando.
tu - tu - tu - tu -tu - tu - tu - tu - tu - tu - tu...