-- Sabe... O mundo todo gira junto uma vez por dia. Sim. Todos nós nos movemos em círculos de um lado para o outro do Sol, todo o santo dia... Um saco, né?
O cheiro de gasolina e esgoto empesteava o banheiro já apertado. Não era possível identificar o que estava mais sujo, a privada aberta com um facão a apoiando, ou a pia com sua torneira enferrujada, sabão ensebado e uma gosma marrom impregnada.
O chão sujo estava alagado, formando pequenas ondas de agua quente ao redor dos pés inquietos do homem e da banheira que tomava quase todo o espaço do pequeno cômodo. Sob ela haviam papéis rasgados e molhados. A maioria eram contas de luz, água ou panfletos de uma "nova churrascaria" que tinha aberto a cinco anos atrás.
A luz fraca que iluminava o local imundo vinha de dois pontos. Uma pequena janela que servia de suporte a uma espécie de porta escova de dentes abandonado. E uma lâmpada incandescente pendurada no teto aos pedaços.
O ultimo detalhe a ser notado, em um dia qualquer, poderia ser o suporte para toalhas, prezo precariamente acima da pia, ou o encanamento enferrujado que deveria ser o maior depósito de tétano da cidade. Todavia, aquele não era um dia normal. Os últimos, na verdade, os primeiros elementos a se observar naquele banheiro sujo eram os dois homens:
Um de meia idade com barba cheia e grisalha, que observava o outro de pé com uma garrafa de gasolina nas mãos e um olhar sombrio indecifrável.
O outro homem tinha olhos cheios de ódio e a boca tapada por uma fita. O mesmo estava amarrado por toda a extensão dos braços e pelas pernas, jogado e sem camisa dentro da banheira suja e quase vazia. Seus olhos de ódio podiam transpassar, também, um pavor e medo enorme.
-- O que estou querendo dizer... É que a porra dos seres humanos tem muito em comum. Mas mesmo assim não tem como todos nos darmos bem, não é? - O homem de meia idade deixou a garrafa de gasolina no chão e se inclinou para pegar o facão afiado que apoiava a tampa da privada, fazendo-a se fechar com um baque plástico que ecoou pelo banheiro alagado e imundo. - Alguns de nós não podem viver sabendo que o cara que estuprou e matou sua filha se safou da cadeia porque simplesmente "tinha contatos".
O homem abriu a porta velha, junto a um sorriso, e trouxe um pequeno banquinho para se sentar próximo ao outro.
-- Alguns de nós precisam de algo para aliviar um pouco a dor, sabe? - Se inclinou sobre o homem indefeso que se contorcia o máximo que podia. - Algo como vingança.
Pouco a pouco o grisalho deslizava a lâmina pela pele do outro, como se limpasse a sujeira que a tampa da privada deixara na faca. Com os movimentos bruscos do estuprador, pequenos cortes já apareciam na pele e manchavam a faca de vermelho escuro.
-- Minha pequena Hearth.. Ela ia pra faculdade de filosofia. Ela amava as palavras dos antigos filósofos... Você não deve entender nada sobre eles, não é lixo?
Então a força chegou as mãos calejadas do homem que começou pouco a pouco a cortar finos pedaços da pele do ombro esquerdo do outro, que gritava por detrás da fita.
-- Baltasar dizia que o desprezo é a forma mais subtil de vingança. Então comecei com ele. Eu o alimentei e o fiz crescer e crescer até chegar ao ponto de virar asco e nojo. Um puro desejo de extermínio. Depois de sentir isso eu me senti mais livre que nunca na minha vida. Era fácil. Eu só precisava te fazer sofrer. Esse se tornou o objetivo de toda minha vida! - A faca pareceu ter entrado mais fundo, dado à expressão de agonia excruciante do outro.
--E também tem Confúcio que disse: "Antes de sair em busca de vingança, cave duas covas." - Olhou de relance para a própria cintura, checando o revólver que lá estava. - Bom... Podemos dizer que esta parte está arranja.
Assim que terminou o que queria fazer, o homem grisalho se levanta, batendo as mãos no colo para tirar os pedaços de pele que lá havia caído. Ele sorriu mais uma vez para a o coração de carne viva que tinha feito no ombro do assassino.
-- Agora você também tem um coração, como eu a tinha. - Afastou o banco com a perna esquerda enquanto puxava o tanque de gasolina do chão, para depois despejar seu conteúdo por toda a banheira e sobre os cabelos meio esverdeados do estuprador. - Como se sentirá quando o perder? Como se sentirá quando perder a vida? Na verdade acho que não vai sentir nada, mas...
Puxou uma caixa de fósforos do bolso e a acendeu na frente do rosto do outro.
-- Sabe?... Epicuro, o favorito de minha Hearth, dizia que a justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem. Bem... - Atirou o fósforo aceso na banheira cheia de gasolina, ateando fogo ao estuprador.
-- BEM VINDO A SELVA, ANIMAL!
O grisalho ficou observando as chamas consumirem pouco à pouco sua vítima. Quando o fogo queimou a fita, ele se deleitou com os berros de dor do outro.
Por fim, com um sorriso no rosto e um gargalhar insano, a noite é fechada com o som de um disparo e o cheiro de carne queimada.
Fim...