Eutanásia
Giordano
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 05/08/16 22:26
Editado: 05/08/16 22:31
Gênero(s): Drama
Avaliação: 9.7
Tempo de Leitura: 4min a 5min
Apreciadores: 9
Comentários: 3
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Usuários que Visualizaram: 17
Palavras: 693
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Capítulo Único Eutanásia

Olá, sejam bem-vindos,

Veem aqueles dois garotos e a menininha brincando no quintal? São meus netos, sabem como são os avôs, nunca se cansam de se gabar sobre os descendentes; aquele mais alto, vê? Está completando dezessete anos, não digam a ninguém, mas é o meu favorito...

Eu sei, eu sei, não deveria escolher um, deveria amar a todos igualmente e bla bla bla, mas o que posso dizer? Ele não me vê como um idoso inválido, pelo contrário, sempre foi carinhoso e afetuoso, ficou comigo e com minha velha algumas vezes enquanto os pais viajavam, até hoje não contei a eles sobre as noites em que ele foi dormir sem escovar os dentes e ainda por cima, após comer meia tonelada de doces... bem, no máximo somos culpados por algumas cáries, nada que o dentista e alguns puxões de orelha não tenha resolvido; a garotinha é uma fofa, faz cinco anos mês que vem, não te conto quantos risos perdidos um avô dá com uma criança dessas, afinal, somos o oposto da linha de tempo, eu ela, enquanto vou beirando meus 76 anos ela sequer está na escola.

Por último, mas não menos importante, bem, esse do meio é o predestinado a ser o geniozinho da família, um real leitor, desde pequeno tem uma sagacidade e apreço pelas letras, já vai na quarta língua e não tenho dúvidas que já procura uma quinta; outro dia o vi lendo Macbeth, gostaria que os pais incentivassem mais o interesse dele, pode vir por ser um grande escritor no futuro, tenho muitas esperanças no potencial desse pimpolho.

Desculpe-me, perdi completamente o foco, como havia dito, avôs nunca cansam de se gabar de seus netos.

Vá entrando, não fique sem graça, vê aquela na churrasqueira, minha única filha, eu sei, estranho, não? Nós que estamos na terceira idade, nesta época, costumamos ter bem mais filhos, mas eis que foi uma decisão conjunta, ficamos contentes com uma, era como planejávamos nossa família desde o princípio, eu e minha veia, ah, ela estaria feliz de ver quão bela e cheia de entusiasmo tornou-se nossa pequena casinha...

Espera, você está realmente acreditando nisso?

Não, nem tudo é tão belo quanto parece, provavelmente eu estaria falando contigo se você existisse, talvez, se meu pútrido cérebro ainda conseguisse exercer tal ação, se eu pudesse andar, se eu pudesse comer por um meio que não por sondas, se eu pudesse sentir uma última vez o gosto da picanha... ah, a picanha... se minha velha ainda estivesse viva, talvez, só talvez...

Muitas condições, eu concordo, e tantas outras, tantas, você sabe o que é ter a mesma cara de bagre toda vez que vê seus netos, sua filha e não poder sorrir? Um inválido, no mais simples sentido da palavra, é isso que sou.

Como ousas dizer que há pessoas que se preocupam comigo e me querem bem, se bem me quisessem teriam me deixado morrer naquela cama de hospital, um maldito Glioblastoma Multiforme grau IV, altamente agressivo disse o médico, para que eu sobrevivesse foi preciso um corte de açougueiro, meu cérebro foi fatalmente e completamente cortado... sistema motor, fala, olfato, tudo pelo ralo e agora, bem, o pouco que me resta é a audição, visão, memória... por qual motivo me deixas com a memória? Era melhor que tivesse sido levada também, não? Ter de relembrar a cada momento de minha débil existência o que fui e depois olhar-me no espelho e ver uma criatura presa em sua própria carne... preso em um corpo completamente disfuncional, como alguém poderia estar feliz com isso?

Se ao menos eu pudesse abraçar meus netos, se eu tivesse conseguido chorar pela morte de minha véia, se ao menos...

Ao menos, pensamento estranho para ter-se agora, você meu caro ouvinte que sequer sabe como soaria minha voz, você que é pura invenção de minha imaginação e meu ultimato para fugir de uma solidão que se instalou e espalhou ainda mais do que o câncer, um subproduto, talvez, que me roubou a funcionalidade e caracterização de ser...

Venceu o câncer, você diz? Pois bem, veja-me vencer sua inexistência enquanto os fluidos da piscina enchem-me os pulmões.

Au revouir!

❖❖❖
Apreciadores (9)
Comentários (3)
Postado 06/08/16 09:38

Mórbido descreve bem esse texto, hehehe. Parabéns!

Postado 06/08/16 09:40

rsrsrs

Valeu, Chico!

Postado 06/08/16 23:54

Esse é um daqueles textos que você ama todos os detalhes. Cara, ficou excelente! Foi uma boa ideia, uma boa narração... Tudo foi muito bom. O que ele falou sobre os netos, o jeito que se referia à mulher dele (gostei bastante desse detalhe, aliás), as lembranças... Você pensou em cada detalhe, e fez um trabalho muuito bom, na história como um todo também, visto que foi uma narração de um personagem de perfil diferente. Esse texto foi maravilhoso, tão bom que sinto que ainda tenho muito mais o que comentar. Estás de parabéns, realemente! <3

Postado 07/08/16 01:00

Uau!

Obrigado pelo comentário, Tia Aye que não morde! ^^

Sério, fico extremamente feliz que tenhas gostado do texto, meus mais sinceros agradecimentis!

Postado 07/08/16 11:50

Ah, de nada!

Seus textos são maravilhosos, sério!

Postado 07/08/16 12:49

Foi o texto mais verdadeiramente verdadeiro que eu já li em toda minha vida... principalmente pelo título...

Eu quero ser médica (ou veterinária... ainda estou com aquelas dúvias cruéis), se eu for médica eu quero me especializar em oncologia.

Todo o procedimento que você descreveu no texto, que foi preciso ser feito para que o homem continuasse vivo, eu acho que isso é a coisa mais cruel do universo... caramba, no seu texto era um homem já idoso, mas mesmo que fosse um homem mais novo, na minha opinião realizar todo essa procedimento cruel para no final a pessoa ficar inválida desse jeito... não vale a pena.

Quero ser médica não para salvar vidas (claro, salvar quando estiver ao meu alcance, mas o câncer não está ao alcance de nós...ainda mais desse jeito), quero ser médica para amenizar a dor e o sofrimento, quero ser médica para tornar a vida da pessoa o ''menos pior'' possível... retirar um câncer para deixar a pessoa inválida desse jeito não é tornar a vida dessa pessoa melhor... de jeito nenhum! É apenas faze-la sofrer mais...

Perdão se de alguma forma eu acabei ofendendo a sua moral ou a moral de alguém que por ventura tenha lido meu comentário... mas essa é a minha opinião sobre tudo isso.

Querer realizar tudo isso para manter uma pessoa ''viva'' é um puta de um egoísmo...

Sei que não somos ''Deus'' para decidir a hora da morte de ninguém... mas para mim, querer salvar a todo e qualquer custo através das mais diversas cirurgias é ''brincar de Deus'' tanto quando tentar amenizar o sofrimento através da eutanásia....

Bem, já me demorei demais aqui falando essas besteiras sem fim...

Parabéns pelo texto! Está completamente perfeito!!!

Um abraço, Meiling!

Postado 07/08/16 13:01

Olha, concordo com ti, só creio que é uma "linha" bem complicada para se determinar.

No caso do meu texto, por exemplo, é uma pessoa que, apesar de total ciência de suas (in)capacidades não pode comunicar seu desejo, daí, onde resideria a escolha de continuar ou não uma vida tão debilitada? É uma condição bem complicada de se determinar, creio que sempre irá ser um grande tabu, decidir entre o que é lógico de se fazer e o que é emocionalmente viável é algo absurdamente complicado, em todo caso, alguém vai ter de "brincar de deus", é bem complicado... :/