Olá, sejam bem-vindos,
Veem aqueles dois garotos e a menininha brincando no quintal? São meus netos, sabem como são os avôs, nunca se cansam de se gabar sobre os descendentes; aquele mais alto, vê? Está completando dezessete anos, não digam a ninguém, mas é o meu favorito...
Eu sei, eu sei, não deveria escolher um, deveria amar a todos igualmente e bla bla bla, mas o que posso dizer? Ele não me vê como um idoso inválido, pelo contrário, sempre foi carinhoso e afetuoso, ficou comigo e com minha velha algumas vezes enquanto os pais viajavam, até hoje não contei a eles sobre as noites em que ele foi dormir sem escovar os dentes e ainda por cima, após comer meia tonelada de doces... bem, no máximo somos culpados por algumas cáries, nada que o dentista e alguns puxões de orelha não tenha resolvido; a garotinha é uma fofa, faz cinco anos mês que vem, não te conto quantos risos perdidos um avô dá com uma criança dessas, afinal, somos o oposto da linha de tempo, eu ela, enquanto vou beirando meus 76 anos ela sequer está na escola.
Por último, mas não menos importante, bem, esse do meio é o predestinado a ser o geniozinho da família, um real leitor, desde pequeno tem uma sagacidade e apreço pelas letras, já vai na quarta língua e não tenho dúvidas que já procura uma quinta; outro dia o vi lendo Macbeth, gostaria que os pais incentivassem mais o interesse dele, pode vir por ser um grande escritor no futuro, tenho muitas esperanças no potencial desse pimpolho.
Desculpe-me, perdi completamente o foco, como havia dito, avôs nunca cansam de se gabar de seus netos.
Vá entrando, não fique sem graça, vê aquela na churrasqueira, minha única filha, eu sei, estranho, não? Nós que estamos na terceira idade, nesta época, costumamos ter bem mais filhos, mas eis que foi uma decisão conjunta, ficamos contentes com uma, era como planejávamos nossa família desde o princípio, eu e minha veia, ah, ela estaria feliz de ver quão bela e cheia de entusiasmo tornou-se nossa pequena casinha...
Espera, você está realmente acreditando nisso?
Não, nem tudo é tão belo quanto parece, provavelmente eu estaria falando contigo se você existisse, talvez, se meu pútrido cérebro ainda conseguisse exercer tal ação, se eu pudesse andar, se eu pudesse comer por um meio que não por sondas, se eu pudesse sentir uma última vez o gosto da picanha... ah, a picanha... se minha velha ainda estivesse viva, talvez, só talvez...
Muitas condições, eu concordo, e tantas outras, tantas, você sabe o que é ter a mesma cara de bagre toda vez que vê seus netos, sua filha e não poder sorrir? Um inválido, no mais simples sentido da palavra, é isso que sou.
Como ousas dizer que há pessoas que se preocupam comigo e me querem bem, se bem me quisessem teriam me deixado morrer naquela cama de hospital, um maldito Glioblastoma Multiforme grau IV, altamente agressivo disse o médico, para que eu sobrevivesse foi preciso um corte de açougueiro, meu cérebro foi fatalmente e completamente cortado... sistema motor, fala, olfato, tudo pelo ralo e agora, bem, o pouco que me resta é a audição, visão, memória... por qual motivo me deixas com a memória? Era melhor que tivesse sido levada também, não? Ter de relembrar a cada momento de minha débil existência o que fui e depois olhar-me no espelho e ver uma criatura presa em sua própria carne... preso em um corpo completamente disfuncional, como alguém poderia estar feliz com isso?
Se ao menos eu pudesse abraçar meus netos, se eu tivesse conseguido chorar pela morte de minha véia, se ao menos...
Ao menos, pensamento estranho para ter-se agora, você meu caro ouvinte que sequer sabe como soaria minha voz, você que é pura invenção de minha imaginação e meu ultimato para fugir de uma solidão que se instalou e espalhou ainda mais do que o câncer, um subproduto, talvez, que me roubou a funcionalidade e caracterização de ser...
Venceu o câncer, você diz? Pois bem, veja-me vencer sua inexistência enquanto os fluidos da piscina enchem-me os pulmões.
Au revouir!