Creio que temos esses momentos de infantilidade. Corremos em volta da casa caçando espíritos imaginários, dançamos valsa com a vassoura ao som de pagode, dormimos com um bicho de pelúcia na falta de nossos pais, tratamos as barras da janela como assentos, como se fôssemos gatos.
Creio que eu devesse ter mais momentos divertidos.
Eu devia ir até a cozinha e abrir a geladeira como quem não quer nada, e depois voltar para o quarto com um pedaço de pudim da mão. Eu devia deitar na cama e me espreguiçar como se imitasse o cachorro da vizinha rolando na grama. Eu devia colocar música alta e fingir que a escova de cabelo era um microfone, cantar Taylor Swift até o vizinho escrever um bilhete para mim – que não seria dizendo “Você está linda com o pijama desarrumado e pagando de louca”. Provavelmente ele escreveria algo como “Use essa escova para pentear seu cabelo!”, e então eu me sentiria ofendida, mas não poderia gritar com um senhor de idade.
É que tem certos dias que você quer voltar a ser criança, ao menos eu sinto isso.
Eu sinto vontade de sair andando pelo pequeno espaço do apartamento só de meia nos pés, esperando que no corredor esteja minha mãe para me repreender e dizer que posso escorregar. Eu sinto vontade de entrar na sala e ver meu pai no sofá ainda com roupa do trabalho e quase babando enquanto assistia programas sem graça na TV. Eu sinto vontade de pular no colo dele e fazê-lo esquecer do estresse da empresa, de puxar minha mãe para que ela também esquecesse do estresse da loja, simplesmente como uma família normal em seus dias normais.
Às vezes eu sinto falta de sair de casa de tarde e andar de rasteira por quilômetros até a praia, só para ver o pôr do sol. Sinto falta de me sentar no calçadão e observar aquele grupinho metido da escola em um de seus encontros semanais, queimando erva e tocando no violão músicas que eu adoro, mas que a mãe não aprova. Sinto falta de mãos mexendo no meu cabelo quando divago demais olhando a praia, e essas mesmas mãos me abraçam depois como se não me vissem há dias – sendo que nos vimos de manhã na escola.
Sabe, eu sinto falta de voltar para casa sem me preocupar com doidos na rua.
Hoje em dia eu ando de salto alto na rua e quase tropeço nos buracos da calçada, olhando de um lado para o outro na rua e segurando minha bolsa como se segurasse um bebê. Eu me encolho na blusa fina de botão quando o vento decide se enraizar debaixo do tecido sem qualquer estampa. Quando chego no bar que procurava, uma onda de alívio me inunda de tal forma que a dona vive perguntando-me a razão pela qual suspiro tanto.
Cumprimento o músico com um aceno e tomo consciência da minha vida adulta quando peço um refrigerante e há casais ao meu redor bebendo cerveja ou alguma bebida mais cara. O sabor gasoso é viciante, embora doce, e me vejo terminando a primeira lata em poucos minutos ouvindo o samba sutil que o artista toca no palco iluminado.
Sinto falta de quando, pequena e ingênua, eu ia com meu pai dançar no meio de todas aquelas mesas. Dançávamos como duas pessoas que não querem nada mais que alguns minutos de felicidade. Sinto falta de quando, pouco mas crescida, eu saía com meus amigos e sentávamos ao lado dos cantores, de modo que nos juntávamos a eles na hora das músicas populares.
Eu sinto tanto essa diferença, quando alguém me chama para dançar, é sempre com segundas intenções.
Dirijo-me para o garçom com lágrimas nos olhos, pedindo mais um Guaraná, Schweppes ou o que quer que ele tivesse de mais gelado. Lembrava tanto do sorriso dos meus velhos avós, das tardes na casa campestre a tocar piano, do nascer e da despedida do sol na praia ao lado do meu primeiro amor, dos acordes de violão do menino daquele grupo excludente da escola, dos sorrisos raros do pai e dos olhares gentis da mãe. Toquei o copo frio com os lábios, sentindo envergonhada uma lágrima descer pelo meu rosto tão cuidadosamente maquiado.
Creio que eu devia voltar para minha cidade algum dia desses.
Se ao menos eu não tivesse inventado sair da casa dos meus pais para conhecer o mundo! Se ao menos eu não tivesse inventado fazer faculdade fora do meu estado pequeno, abandonando quem não aceitou minha escolha de curso, esperado sozinha no terminal o ônibus que me levaria à capital, e nessa capital eu rumaria para o aeroporto e chegaria igualmente sozinha no distrito federal.
Volto para casa cambaleando, segurando em meus ombros o peso do mundo, da ternura recusada, saudade ignorada e letras melódicas compondo uma bossa nova da minha nostalgia.
Quando durmo, penso em como lidar com sentimentos era mais simples quando eu era mais nova, como o país se resumia a minha cidade pequena e ao abraço terno de um amigo. Penso no calor do verão e no bronzeado chique que as coroas procuravam ter, no friozinho gostoso do inverno e nas frutas que eu catava da árvore da vizinha. Penso na minha vida e penso na felicidade.
Por fim penso se eu estou feliz.
A resposta? Talvez.