Era uma vez uma rainha, ela se contorcia na cama com dolorosas contrações, seu corpo estava débil e estirado na larga cama; a barriga pesava assustadoramente. Se continuasse fraca, perderia seu filho.
O marido não se encontrava no quarto, a deixara sozinha aos cuidados das empregadas – as quais nunca viria a ideia de que a rainha pudesse ter algum problema à noite. A mulher estava desesperada, suas grossas lágrimas caíam no travesseiro de plumas. Precisava chamar alguém, mas estava fraca demais para qualquer coisa.
“Oras, Vossa Alteza, por que tanta tristeza?”, um homenzinho apareceu aos poucos na mesa de cabeceira da rainha, à frente dela. Ela nada respondera, nem precisava.
Ele saltou da mesa e rondou o quarto. “Sabes, posso ajudar-te a superar teu problema; consigo fazer com que teu filho cresça forte e você sobreviver.” As lágrimas dela diminuíram e ele tinha total atenção da senhora. “Mas com uma condição, Vossa Alteza: quando teu primogênito conhecer o primeiro amor, os dois perder-se-ão na floresta e não hão de conseguir voltar a teu reino.”
Não veio à mente da rainha que para um nascer o outro teria que se perder. “Sim, por favor, tudo pelo bebê.” Ele sorriu, deixando à mostra todos os dentes amarelados e tortos da frente, os estralou e aos poucos a rainha começou a ficar mais forte. “Mas, senhor, quem seria você?” perguntou finalmente a ele, que já estava de saída.
“Ah, Vossa Alteza, achei que à essa altura se lembrarias de mim.” E assim, novamente, desapareceu do quarto, deixando-a feliz e curiosa.
“Qual era o acordo dele?”, foi o que ela pensou antes de cair no sono, aliviada.
Não muito longe dali, um caçador caminhava lenta e melancolicamente, à espera de uma explicação para a situação atual da família daquela pobre garota que encontrara jazida na floresta, ou pelo menos, o que restara dela. “Não há como amenizar os fatos, muito menos a dor.”, pensou, enquanto parava em frente à porta e via uma jovem abrindo-a.
“O que significa isso?”, perguntou enquanto oscilava o olhar do caçador ao capuz ensanguentado que se encontrava em seus braços. “Isto pertence à minha sobrinha! O que aconteceu com a minha Chapeuzinho?”, a mulher começou a se desesperar, não notando a presença de sua filha ao seu lado.
O caçador apenas suspirou, enquanto a olhou friamente. "Não há como amenizar a tua dor, sendo assim, serei breve: tua sobrinha foi atacada por um lobo, e isso foi tudo o que restou de recordação. Meus pêsames.”
A jovem apenas olhou perplexa enquanto o capuz era deixando em suas mãos, vendo em seguida o homem murmurar algumas palavras e se retirar. O chão antes limpo estava coberto pelo sangue que escorria do tecido. Um sangue inocente. O sangue de uma garotinha que tinha sonhos, desejos e que lhe fora tirado o direito de realizá-los.
Aturdida, a mulher apenas chorou em silêncio, esquecendo-se da presença da própria filha, que observava assustada. “Mamãe, cadê minha prima? Ela nunca se separou desse capuz, por que está cheio de sangue?” vendo que era ignorada, a garota puxou a saia de sua mãe tentando ter alguma explicação, porém, apenas recebeu vários tapas para se calar.
“CALE-SE, SABINA! TUA PRIMA NÃO VOLTARÁ MAIS.” Gritou, exaltada. “E sabes por quê? Porque ela não soube obedecer, pois é igual a você; apenas sabe quebrar regras como se não houvesse consequências! É por isso que ela não voltará... É por isso que este capuz é a única coisa que restou dela.” – declarou, soluçando, jogando o tecido no chão e se dirigindo para outro cômodo.
A menina apenas ficou parada, sentada no chão enquanto sentia seu rosto arder e sua visão embaraçar devido às lágrimas, olhando o tecido aos pés. Ela fez uma promessa que mudaria o rumo de sua vida.
Os dez anos seguintes passaram com a felicidade em todo o reino com o novo príncipe nascido. “Foi um milagre”, eles diziam, “sou muito azarado”, é o que um garotinho dizia a si enquanto fugia do protegido castelo na área nobre do reino. Esgueirava-se nos esgotos embaixo da grande estrutura, já conhecia perfeitamente aquele caminho das tantas vezes que o atravessara; terminou no meio de uma feira na vila. Ele andava olhando ao redor indiferente com a situação, suas roupas pareciam com as de um camponês e ninguém além dos serviçais sabiam como ele era.
Sua presença era tão insignificante quanto a de uma garota que por ali passava. O encontrão levou-os ao chão; os dois deram vários xingos de um ao outro. A garota levantou-se e bateu na saia do vestido para tirar a sujeira que viera do chão, Nero levantou-se com certa dificuldade, esfregava os olhos com as mãos sujas, iria xingar novamente a pessoa que derrubou-o, isso se fosse alguém mais velho ou um garoto, mas não, era uma menina, e linda por sinal. Ele sorriu maliciosamente.
“Deverias olhar por onde andas.” A garota sorriu e vestiu o capuz vermelho da capa, estava manchado com um vermelho escuro em contraste com um pano mais vivo.
“Não é daqui, sim? Fala diferente, é até engraçado.” Ele nada falou ou expressou. Frustrada com a falta de resposta do outro, puxou-o pela manga da longa camisa e o levou a um lugar afastado da feira, com muito menos movimento, tanto que era até assustador. “Eu sei que não é daqui, sua fala é muito igual às pessoas do castelo.”
Nero torceu o nariz e voltou a sorrir, “Tens razão, não pertenço a um lugar pútrido nos quais tua espécie vive; moro no castelo, plebe, sou o Príncipe Nero, primogênito do rei e sucessor ao trono.”
“Ah, então você é aquele filho que a rainha nem se importa mais porque apareceu outro ‘milagre’ na vida dela?”, ela sentou-se no chão de terra, esperando a reação dele. Mas Nero sabia se controlar.
“Não, sou o sucessor ao trono, plebe. O primeiro milagre da vida da Senhora Minha Mãe, quando notar que o filho não terá utilidade, deixá-lo-á de lado para voltar a atenção a mim, plebe.” Respirou fundo, ele conseguiu manter a raiva, mas claro, uma hora ela poderia explodir.
“Pois saiba, principezinho Nero, eu tenho um nome também. Sabina.” Bruscamente, ela levantou, ficando cara a cara com o outro, ele sorriu.
Foi a partir dessa conversa que eles começaram a se encontrar todos os dias no mesmo local, às vezes Nero faltava um dia ou outro por estar sendo severamente punido no castelo por fazer algo de errado, e outras Sabina levava algo para os dois lancharem e dizia ‘consegui isso daqui com um amigo.’ E assim, Nero começou a se apaixonar platonicamente pela garota, e Sabina começou a gostar perdidamente pelo garoto.
“Sabes, Sabina, há uma coisa que eu queria fazer com meu irmão,” Olhou à amiga, claro, Sabina já sabia o que ele tinha vontade de fazer. “Irias comigo ao palácio esta noite para me ajudar com o que eu desejo, plebe?”
“Claro que eu te ajudo, Vossa Alteza.” Ela sorriu maliciosamente, sempre quis se vingar da mãe, daria para extravasar um pouco se fosse com algum qualquer.
Otávio acordou com uma forte dor, olhando assustado à sua volta, reparando nas grossas correntes que prendiam seus pulsos, machucando-os. Não se recordava de como viera parar no lugar imundo, muito menos sabia o porquê de estar acorrentado e amordaçado. Todavia, ao capturar o olhar da pessoa sentada em uma poltrona à sua frente, foi como se todas as cenas voltassem à sua mente, sendo impossível refrear as lágrimas de desgosto e desespero.
“És tu, Nero, meu irmão?”, o menor soluçou cabisbaixo, não reparando no sorriso sádico que se encontrava na face serena de Nero.
“Oh, querido irmãozinho, não precisas ter medo. Iremos apenas divertir-nos com uma nova brincadeira, sim?”, sorriu, afetivo, vendo o olhar de Otávio se suavizar, esperançoso. “Queres brincar, não queres?”
“Oh, sim, adoraria!”, a criança exclamou, sorrindo, logo mudando a sua feição ao notar a brilhante faca que o primogênito brincava entre os dedos. “Irmão... Por quê?”
Nero apenas gargalhou, observando o caçula se assustar e se retrair com sua aproximação. “Otávio, meu caro ingênuo irmão, tu nem me permitiste explicar a brincadeira! Ela consiste em... Ver quem deixará mais marcas no corpo alheio; e o perdedor será aquele que gritar e agonizar em demasia. Mas...”, o maior parou, abaixando-se e fazendo Otávio lhe encarar. “Veja, estás impossibilitado! Acho que sabemos quem perderá, não?”
O primogênito não deixou o outro responder, ouvindo apenas um grito agudo quando o peito alheio fora rasgado, formando a letra N. Um riso feminino se fez presente, e só então Nero se lembrou de sua amada.
“Meu amado príncipe, por que está pegando leve? Seu irmão fora a ruína de seu orgulho, tomando-lhe o bem mais precioso: sua família. Otávio deve sofrer as consequências por ter nascido e roubado o seu lugar.”, Sabina disse, calmamente, enquanto acariciava o rosto do amado antes de tomar a faca de suas mãos e ir ao encontro de Otávio.
Com uma frieza incomum para a sua idade, a garota forçou a faca no peito do menor, perfurando-lhe a pele profundamente, enquanto deslizava e formava um nome conhecido. Satisfeita com o trabalho, ainda ouvindo os demasiados gritos de Otávio e o sangue do mesmo ensopando o chão, sorriu perversamente, quando em um surto viu Nero lhe tomar a faca e cortar várias vezes o peito do menor, até não conseguir mais visualizar o nome de seu amado Nero no corpo daquela pobre criança, agora falecida, após ter a garganta cortada friamente.
“Vamos embora, Sabina, não há mais nada de meu interesse neste lugar imundo.”
A garota apenas olhou o corpo inerte do que antes fora o príncipe caçula, satisfeita por seus planos terem se concretizados, seguindo seu amado para fora da casa do antigo caçador que tivera um destino similar há algumas horas, tendo o que restara de seu corpo jogado aos corvos.
“Não achei que houvesse coragem o suficiente para fazer o que fez, meu querido Nero. Subestimei-o ao afirmar a mim mesma que a sua raiva jamais venceria o seu bom senso.”
“É como dizem, o feitiço virá contra o feiticeiro.”, Sabina parou de caminhar, já dentro da floresta, enquanto o encarava, tentando entender o sentido de sua frase. “Tuas atitudes cegas pelo anseio de se vingar daquele que não tivera capacidade de salvar a tua tia não a fez enxergar o óbvio desta situação. Tua mente é brilhante, não há como negar, mas é falha pela tua ingenuidade infantil que ainda carregas.”
Abismada, a garota recuou alguns passos ao ver o olhar fixo de Nero na faca que ele segurava. “A vingança estava planejada desde o momento que o caçador apareceu em sua casa, sem se desculpar, apenas avisando sobre o ocorrido como se não tivesse importância, mas tu precisas de um segundo motivo. Precisavas de outra pessoa para te ajudar, e quem melhor do que alguém que sabe exatamente a dor que te transformou, não?”
Antes da garota responder, Nero avançou sobre Sabina, derrubando-a no chão e em seguida fincando sua faca em seu coração. Perplexa, a garota nada fez, a não ser gritar e ver tudo escurecer.
Nero se levantou ao constatar que a amada já não respirava, e antes de ir, fechou seus olhos e declarou seu próprio fim. “Sinto muito, meu amor, apesar da minha pouca idade, sei que não voltarei a amar alguém como a amei. Mas nós não seremos felizes. Nós abdicamos de nossa felicidade ao mergulhar nesse abismo de ódio e loucura. Então que vás primeiro e descanses, esperando-me no inferno que nos aguarda.”
Sentando no galho de uma árvore, Rumpelstiltskin contemplava a cena que acabara de acontecer, vendo aquele familiar garoto se aventurar cada vez mais dentro da floresta.
"Olha, se não é o pequenino garoto que deveria ter sido meu há dez anos. Não era exatamente esse o desfecho que esperei ao fazer o segundo acordo com a rainha tola.", o duende desceu da árvore ainda olhando o caminho na qual Nero havia partido, fitando em seguida a poça de sangue que se formara perto de seus pés, saindo do corpo da garota.
"Bem, não é como se algo tivesse dado errado. Ele realmente se perdeu nessa floresta. Se perdeu de si mesmo, e assim, perdendo o que restará de sua sanidade.” Enfim chutou o corpo inerte da garota e caindo na gargalhada por tudo ter dado supostamente como ele quis.