Ela entrou sem pressa alguma. Tinha um cachecol à volta do pescoço, e um gorro carmim na cabeça. Sorria com toda a vontade quando o empregado a atendeu.
- Um café duplo, sem açúcar, por favor. - Pediu. Em menos de um minuto tinha o copo de papel a escaldar na mão. Fez uma pequena careta e olhou em volta. Numa mesa escondida estava um jovem sentado, talvez teria a mesma idade que ela. O casaco estava pendurado na cadeira, o portátil aberto e a canela espirrava vapor com a sua bebida quente. Ela caminhou em passos alegres até ele. Sentou-se na cadeira da frente e pousou o copo em cima da mesa escura. - Quando eu era pequena a neve era mais engraçada. Agora que cresci compreendo melhor porque é que as pessoas não gostam dela. Mesmo sofrendo do síndrome de peter pan, não há como não concordar que ela já não tem a mesma magia de que quando o pai natal era real e as pegadas na lareira eram dele e não dos sapatos velhos do meu pai. Não me leves a mal, leva-me a Paris. - Riu-se com a piada sem graça. - O pai natal existe, apenas não com um trenó e renas, mas com sopa para os sem abrigo.
Ele poderia apenas ignorar a garota em sua frente. Poderia. Mas preferiu colocar seu copo com café amargo de volta na mesa e olhar para a janela.
- Eu ainda acreditava no pai natal, até tu chegar e contar que ele não existe. E agora eu vejo que a minha vida inteira foi uma mentira. Não uma mentira por completo, mas uma meia-mentira, porque eu lembro de ver meu pai colocando doces na minha meia antes da meia-noite. Percebeu que eu falei a palavra meia três vezes na mesma frase? – ele tomou um gole do café e fez cara feia.
Talvez o local estivesse cheio. Talvez vazio. O importante mesmo naquele momento é que não importava quem mais estivesse lá, pois não faria diferença nenhuma na conversa dos dois.
- Isso quer dizer que tens um fascínio bizarro por meias? Por coisas a meio ou por meias coisas? Talvez o copo esteja a meio, mas cheio, certo? Afinal temos meias para o provar. - Ela sorriu encantada.
- Não gosto de coisas pela metade. Não divido uma laranja em duas. Divido ela em quatro. Mesmo o quatro não sendo meu número favorito. Já pensou se tivéssemos quatro pés e usássemos dois pares de meias? E meu copo ainda está cheio, porque não gosto de café amargo – Ele a encarou e sorriu com metade da boca.
- O quatro é o meu número favorito. Mas não me via a dividir uma laranja com quatro pessoas. Talvez porque não goste de laranja. Seriamos completos. Zeus separou os nosso corpos em dois e agora andamos por aí à procura da nossa segunda cabeça, segundo par de pés e aquelas duas outras mãos que fazem tanta falta. Isso resolve-se com açúcar. - Ela estendeu a mão chamando uma empregada. Pediu um pacote de açúcar e esperou que a jovem voltasse antes de continuar a sua conversa. Entregou o pacote, ele estendeu a mão tocando na dela. Ela sentiu calor e ele frio. - Então eu gosto de açúcar, mas em bolos. Café é bom amargo, é como o conhaque ou o whisky, tem mais poder quando no seu estado natural.
Ele misturou o açúcar com o café e coçou a barba, como se estivesse fazendo alguma experiência que revolucionária o universo.
- Não gosto que me completem. Prefiro que me façam transbordar, até que o ambiente ao nosso redor fique submerso pelo sentimento – continuou misturando o açúcar, como se aquilo fosse algo realmente fascinante. – Não sou fã de whisky. Prefiro algo mais gelado como o chopp ou mais colorido como algum drink criado a partir de uma mistura de várias outras bebidas. De natural na minha vida só salada.
- Espero que a barba também seja. Completar não é isso tudo? Encontrar a nossa metade significa encontrar emoções, saber gritar, sorrir, chorar e viver com alguém que vive do mesmo género de maneira diferente. Faz sentido? Completar não é igualar. Para isso temos amigos, que são o sexto dedos das nossas mãos que fugiu. - Bebericou o seu café ainda demasiado quente para sua língua. - Mas tens razão. Está mesmo calor. - Ele ergueu as sobrancelhas, mas entendeu quando a viu tirar o cachecol. Posou-o na cadeira das costas e depois correu o zip do casaco despindo-o com delicadeza. Mexeu no cabelo colocando para a frente. - E não existe bebida melhor que chocolate quente com marshmallows durante o Inverno. - Disse enquanto arranjava a sua franja chata. - E viver do natural é alcançar as estrelas.