Sarah sempre foi uma pessoa de sensibilidade apurada em vários sentidos e era muito grata por isso, pois tal qualidade lhe foi essencial para se tornar a Sacerdotisa Sombria de quem a Divina Brina e seu amado esposo tanto se orgulhavam. Por isso mesmo, não demorou muito para sentir um calafrio que lentamente a despertava do cochilo que deu enquanto aguardava seu ardente Diablair retornar para a cama. Todavia, o sutil resfriamento corporal a fez acordar de imediato: como, em nome de Santíssimo Satã, poderia esfriar no Inferno?
A mulher saltou da cama e rumou para a janela mais próxima, puxando a cortina de tecido escuro para poder averiguar os arredores de seu lar e, espantada, constatou que as chamas normalmente alaranjadas que circundavam sua residência havia se tornado verdes, expelindo um miasma de igual coloração que ascendia e pairava de modo a formar uma imensa espiral sobre a Mansão. Não bastasse isso, era possível ver o que a princípio parecia ser neve caindo da formação gasosa. Ao tocar a substância, Sarah se viu tomada por um sentimento tão pesaroso que as lágrimas vieram de imediato.
- Pela Deusa Afogada, o que é isso? O que está havendo? - questionou de modo retórico, enxugando as lágrimas enquanto conjurava o mesmo feitiço de higienização corporal instantânea que seu marido usara minutos antes e saiu do quarto ainda trajando sua vestimenta rósea de cetim. - As crianças! Tenho que ver as crianças!
Sarah começou a correr e chegou ao quarto mais próximo, que pertencia à Tristeza. Abriu a porta e acendeu as luzes, mas constatou que a menina não estava lá. Mais preocupada ainda e sabendo de antemão que Tortura estava com a Impetatriz, rumou para os aposentos de Ternura, onde respirou aliviada ao ver que a garotinha dormia profundamente com o rostinho oculto pelo seu chapéu de cowboy. Prontamente a Sacerdotisa Sombria fez alguns gestos cabalísticos e com poder e autoridade, recitou:
- Satanizard, Carontegattor, je les invoque! Satanizard, Carontegattor, je vous commande! Protégez et obéissez à cet enfant, que personne d'autre que quelqu'un de la Famille ne s'approche!*
Imediatamente, um enorme lagarto de escamas escarlates com seis pares de olhos, grandes asas de morcego e uma longa cauda cheia de espinhos em chamas, bem como um robusto humanóide roxo com cabeça de crocodilo e garras gotejando veneno surgiram cada um em um lado da cama de Ternura, prontamente obedecendo as ordens de sua Dæmonier. Sem perder um segundo sequer, Sarah saiu em disparada, sentindo a alteração atmosférica e energética advinda da Câmara da Escuridão Compartilhada. Soube de imediato que Diablair estava lá, mas não compreendia o motivo.
Um sentimento agourento lhe tomava o cerne, fazendo com que seu olhar marejasse novamente: não costumava se enganar com seus pressentimentos e não estava tendo nenhum bom enquanto corria. Fosse o que fosse, Sarah iria confrontar de frente, pois o bem estar de sua família era mais importante que qualquer coisa para ela. Mas, por quê aquilo estava acontecendo justo agora, após um dia tão perfeito e especial? Assim, com mil pensamentos na mente e muita angústia no coração, ela subitamente estacou no lugar ao se lembrar de algo muito importante que Diablair havia comentado com ela no dia em que ele havia encontrado a recém nascida Ternura:
"Antes de adentrar no portal de volta para nossa casa, eu ouvi a voz da Divina Brina em minha mente me dizendo que dali a cinco anos, ela teria um Desígnio para mim envolvendo a criança e, se eu aceitasse, ele seria me revelado seis meses antes do sexto ano de vida da criança e deveria ser iniciado seis horas após a comemoração de tal data. Ela também confiaria totalmente em mim no que se referisse à execução do Desígnio, me dando liberdade para fazer o que eu achasse melhor para cumprí-lo. Eu concordei com um acenar de cabeça, prometendo mentalmente como devoto e amigo dela que faria tudo ao meu alcance para honrar tal pedido."
Conforme se aproximava da escadaria que levava ao corredor subterrâneo cujo término se encontrava Câmara onde sentia seu esposo abrindo uma das urnas que continham os corações do casal, a mente de Sarah trabalhava em um ritmo alucinado, tentando compreender como um Desígnio da Divina Brina poderia ter se convertido naquela situação adversa. E tudo piorou ainda mais quando ela se deparou com Tristeza nos primeiros degraus da escada.
A menina estava silenciosamente pranteando sangue, caminhando de um modo vagaroso, como se cada passo fosse dado mediante um esforço hercúleo. Sarah imediatamente desceu a escadaria em três saltos, amparando a sobrinha em um abraço acolhedor e emocionado. Ela sabia que aquele choro era uma mistura de pesar, remorso e desespero, pois era essa a aura que Tristeza emanava e era tal amálgama sinistro que estava chovendo lá fora em forma de cinzas.
- Ele realmente fez... Eu sabia que ele faria, mas... - Tristeza murmurou, expelindo mais duas lágrimas rubras conforme sua voz mal podia ser ouvida. - Eu fui a primeira.. E Ternura será a última. E você, Tia Sarah... Você também...! - a menina foi incapaz de continuar ou mesmo retribuir o abraço da adulta que em vão tentava consolá-la.
- Onde está seu tio, Tristeza? O que foi que ele te fez? - inqueriu a Sacerdotisa das Trevas, encarando a sobrinha nos olhos e encontrando somente um brilho vazio no lugar das suas íris.
- Meu... Tio? Não sei... Mas aquilo está ali... - A menina sussurrou ao apontar para trás antes de se desvinciliar da tia e começar a subir a escadaria vagarosa e silenciosamente, afastando-se da sua protetora.
Sarah viu seu affair de costas no final do corredor, mas ele parecia... Diferente. E não era apenas por conta do manto preto com contornos vermelho-sangue e ombreiras adornadas com caveiras metálicas transpassadas por espinhos ou do capuz igualmente escuro que encobria sua face. Era por causa da presença dele, como se sua mera existência ali fosse algo errado, distorcido. Ela ficou confusa e angustiada, sentindo aquela bizarra perturbação se propagando no ambiente que esfriava ainda mais.
Ela o chamou pelo nome, seu timbre de voz denotando a intensidade de seus sentimentos na medida em que, ao ficar de frente para ela e em um piscar de olhos, seu marido anulou a distância entre ambos, ficando somente a alguns passos de distância com os braços abertos, em um sincero e silencioso pedido de abraço. O gesto tranquilizador enterneceu-a e ela logo se deixou envolver pelo par de braços daquele homem por quem tanto fez e sentia. Por um segundo, ela sentiu que podia se aconchegar na firmeza daquele gesto, retribuindo tanto quanto podia.
Todavia, a força do gesto foi aumentada de modo célere na medida em que ela se viu imobilizada por Diablair, que comprimia o corpo agora agitado de mulher em seu poder com um rigor crescente e maligno. A Sacerdotisa Sombria começou a gritar de dor, exigindo ser solta, mas tudo o que ouviu em resposta foi o som dos ossos de seus braços, costelas e coluna vertebral se despedaçando em uma dor lancinante. Diablair agora ria baixinho enquanto apertava ainda mais o corpo imóvel da esposa, fazendo com que fraturas expostas surgissem e os pulmões dela fossem perfurados enquanto ela urrava e chorava, incapaz de reagir.
E então, o corpo de Sarah começou a congelar e se despedaçar na medida em que seu esposo a destroçava em um abraço monstruoso e inclemente repleto de chamas esverdeadas e gélidas como nitroglicerina líquida, tal gesto assassino só cessando quando ele a partiu em diversos pedaços. Muitos caíram aos pés dele, enquanto outros se espalharam pelo corredor com o efeito da pressão homicida e inumana. Quando a cabeça da jovem despencou e bateu no chão, estourando ruidosamente como uma taça de cristal, Sarah se viu parada diante de Diablair, que estava novamente distante dela, a encarando com um olhar frio e ameaçador. Sua face estava totalmente oculta por uma máscara com uma face de demônio que só deixava expostos seus olhos agora como que irradiando chamas, lábios ressecados ao ponto de estarem feridos e o queixo.
- Imaginei que estivesse protegida e tivesse certa resistência natural ao meu Dom, mas confesso que me surpreendeu. - havia desejo de morte naquelas íris com a cor do Inferno enquanto ele falava com uma voz muito diferente da habitual e de entonação perturbadora. - Dada a intensidade que lhe impus, é certo afirmar que o seu potencial com certeza é ímpar. Excelso.
Sarah há tempos se tornara uma mulher forte, poderosa, confidente e corajosa, mas seja lá que desgraça tivesse acontecido, abalou completamente sua estrutura emocional e espiritual. Ela estava banhada em suor, ofegante e profundamente entristecida, seus olhos incapazes de deter as lágrimas enquanto defrontava seu esposo.
- Em nome da Divina Brina, que PORRA você fez comigo, Diablair?! E por quê?! - indagou a bela mulher com a voz embargada, sentindo coisas dentro de si que preferia não tentar denominar no momento. - Eu vou te dar dez segundos para me dizer que diabos está acontecendo ou juro que vou arrancar as respostas de você à força! - sentenciou a jovem, assumindo uma postura de combate.
- É agora que começará a invocar os monstros que geralmente guarda dentro dos bolsos**, Srta Eophiatus? - indagou calmamente seu marido, novamente a ferindo, mas desta vez por conta do modo extremamente frio como a tratou. - Bem sabe o quanto me apeteceria que me enfrentasse nesses seus trajes... - havia uma malícia explícita na frase e no sorriso cheio de presas afiadas e tortas. - Entretanto, prefiro lhe alertar novamente sobre a data de hoje.
- Mas, o que isso tem a ver com o que você está fazendo?! - tornou a questionar Sarah, visivelmente abalada com tudo aquilo que ouvia e via.
- Tudo. - respondeu Diablair com a voz leventente abafada pela máscara enquanto desviava o olhar da esposa para poder acomodar melhor o rosto ali dentro. - Absolutamente tudo. No entanto e se me permite, prefiro guardar as explicações para depois da devida recepção às nossas vindouras convidadas.
- Se você acha que eu vou permitir que você faça o que bem entender, está mais que enganado, "Sr. Diablair". - ameaçou a embravecida mulher, caminhando na direção do marido até ficar a menos de meio metro de distância do marido e o encarando com o olhar marejado, todavia determinado. - Você está completamente louco e será detido aqui e agora!
- Tarde demais, Sacerdotisa Sombria. - respondeu o mascarado em tom igualmente ameaçador, fazendo com que sua aura diabólica se chocasse contra a energia protetora da mulher perante ele. - Mas, adorarei vê-la tentar. Oh, Satã, eu adorarei!
Sarah não podia acreditar que estava a ponto de lutar contra o homem que amava sem sequer entender o porquê. No entanto...