“Quem dera ser um peixe
para em seu límpido aquário mergulhar”
Mesmo com os fones de ouvidos grandes o suficiente para cobrir suas orelhas por completo, o som se propagava e atingia o usuário de transporte público que se sentava ao seu lado. E caso tivesse sido sempre o mesmo usuário nos últimos dois meses, ele cortaria para sempre de seu repertório musical qualquer canção do Fagner. Abelardo, como se estivesse hipnotizado pela melodia e perdido na letra, preenchia incessantemente seus ouvidos com aquela música que lhe trazia uma mistura de alegrias e tristezas: “Ah, quem dera ser um peixe”.
Sorrisos cintilantes e lágrimas inundantes: ambos se cruzavam, como se cruzam navios piratas em guerra navegados por timoneiros alcoolizados de rum barato. Em cada mudança de direção, seu passado perdido a quilômetros de profundidade ficava mais próximo da superfície até submergir em forma de sons e visões. Quando mais jovem, no ápice de sua vadiagem e da pressão dos seus pais para arranjar um emprego que lhe desse um futuro digno, gastava suas tardes de verão inserido num bote de madeira capaz de, no máximo, aguentar as águas calmas do Grande Rio Bom de Pescar. Quando a pescaria era boa, fisgava jundiás e traíras; quando contrário, voltava para casa de mão abanando. Mas teve uma pescaria excelente, em que o seu pequeno anzol se enroscou num ser mágico de beleza incomensurável que no segundo puxão estava a bordo. O frágil bote não virou por teimosia, revelando uma resistência ao inesperado nunca imaginada. Foi um susto imenso! No peito de Abelardo, seu coração bombeava desenfreadamente litros de sangue, primeiro pela quase experiência de tragédia náutica, segundo pela sereia que o acompanhava.
Muito obrigado, moço, muito obrigado era o que ela mais lhe dizia por ter sido salva do eminente afogamento. Mas, se ela o insultassem com as mais pesadas ofensas existentes, as que ferem a moral própria e da mãe, não teria notado. Abelardo estava paralisado na voz suave e quente da sereia. E, em seguida, sua atenção foi levada da voz às ondas do corpo da sereia, que plena de curvas apresentava um par de pernas e o fez notar que o ser mágico era mais parecido de si do que imaginara.
Na segurança da terra firme, se conheceram melhor. Abelardo comentou que pescava por estar de férias, mas logo entregou sua realidade de desocupado ao tentar convencê-la que as suas férias eram crônicas. Iza, que revelara seu nome ao imitar a mãe pedindo para não voltar a treinar no Grande Rio Ruim de Nadar, outro nome para o mesmo rio, afirmou categoricamente que iria finalmente aprender a nadar para poder se formar no curso de educação física. Vidas diferentes, pressões familiares presentes. Essas semelhanças foram logo notadas por eles, mas perceberam que se conheciam cada vez mais ao mergulhar no olhar um do outro. Compartilhavam em suas almas a cena do salvamento do afogamento, o susto em esbarrar com o improvável, o desejo de ser levado pelo turbilhão de seus desejos. Tocaram-se os lábios e o primeiro beijo foi trocado.
O ônibus parou e Abelardo desceu — para o alívio do companheiro de banco. Um casal de namorados dividia um hambúrguer minúsculo repleto de molho de cor duvidosa num dos bancos distribuídos pela movimentada praça do local. Conhecia essa região da cidade como um rio conhece o seu percurso para a foz. Lugar especial. Vê-los comendo tal comida lhe embrulhou o estômago. Enojou-se de comida industrializada por trabalhar nos últimos dois anos numa franquia de fast food. Morando há algumas semanas na cidade, depois de se mudarem do interior para uma oportunidade de estágio em educação física para ela, o casal visitou o aquário municipal que era o principal ponto turístico do estado e ficava em frente ao banco que o casal dividia sua refeição isalubre.
Passava os dias encarando e se aborrecendo com os anúncios de jornais, as notificações do LinkedIn e as oportunidades nos portais de emprego. Sua experiência de pescador amador não lhe garantia vantagem alguma diante aos concorrentes mais qualificados para assumir o emprego que fosse. Numa tarde chuvosa, Iza retornou ao apartamento pequeno que ambos alugaram— mas só ela o mantinha com o pouco que recebia daquilo que chamavam de salário — e lhe fez um convite:
— Vamos ao aquário! Você precisa relaxar.
Quis negar, afinal, o peso de ela se encarregar de também comprar o entretenimento do casal lhe dava calafrios. Não teve como fugir, visto que os ingressos já estavam em posse de Iza e ela assegurou que os ganhou de uma colega de trabalho.
Depois de uma hora enfrentando axilas na cara e empurrões por todas as partes, a lotação os despejou na parada de ônibus mais próxima ao reduto dos mais belos seres marinhos enclausurados da américa latina. Chegaram no hall de entrada do aquário e suas roupas pingavam de tanta chuva que tomaram nas costas. Acharam graça ao notar que teriam uma experiência completa, tal como se estivessem imersos na vida aquática.
A chuva torrencial e o vento forte, além de garantir que visitassem o aquário tão molhados como uma raia, presenteou os mais corajosos com um passeio repleto de espaço vazio para ocupar. Molhados e transitando pelos caminhos em túneis de vidros submersos ao fundo do grande volume de água, sentiram-se como visitantes da superfície caminhando sobre o solo do fundo do mar. Os vidros de cada lado eram próximos um do outro, tal como o vidro do topo era próximo às cabeças dos visitantes. Era apertado e, num dia de número de visitações típico, os claustrofóbicos teriam preferido ficar trancados num elevador.
Sem medo do fechado e sem pessoas esbarrando, Abelardo e Iza caminharam por todos esses caminhos e pararam inúmeras vezes para tirar fotografias; queriam aparecer com peixe-palhaço, aquele que, segundo o segurança do local, ganhou o mundo nas câmeras do cinema. Abelardo respondeu que não ele próprio ganhou as telonas, mas ganhou o coração de uma sereia. Sorriso constrangedor por todos os lados, mas um claro sinal de amor.
Subiram uma escadaria, que os levou as partes superiores dos aquários. A cada degrau, um sorriso trincado e um suador tomavam conta da fisionomia de Abelardo. No seu interior alimentava, sem aparente motivo, uma nostalgia, uma forte vontade de reviver o que foi vivido naquela tarde no Grande Rio Bom De Pescar.
No topo, onde poderiam ver a barbatana do tubarão cortar a água, também havia um caminho de vidro, mas em que o material ficava sob seus pés. O mais distraído, olhando de longe para pessoas sobre tal caminho, pensaria que Jesus tinha renascido e mostrava novamente seu mais famoso milagre. Os peixes, olhados desse ponto, eram irregulares, como se formas de zigue e zague fosse a opção de evolução da natureza. Divertiam-se com que viam, ao menos Iza. Adalberto, por sua vez, vivia no passado, flutuando sobre lembranças que incessantemente queriam se tornar realidade.
Então, a empurrou para dentro do tanque dos tubarões, utilizando as duas mãos bem abertas. Pôs-se a observá-la a debater-se freneticamente, tentando em vão aplicar suas rasas técnicas de natação, enquanto enchia a boca de água e ar implorando por ajuda. Abelardo, sem camisa e sapatos, pulou para dentro do tanque, penetrando na água como peixes saltadores o fazem, e nadou como se tivesse nadadeiras até sua namorada. Iza, movida pelo desespero, o acertou vários golpes no rosto até conseguir se agarrar em torno de seu pescoço para então ser resgatada.
Fora do tanque, e agora movida pela raiva, acertou o rosto de Abelardo com um tapa seco como um deserto. Sua voz que poderia seduzir qualquer homem para o fundo do rio era ríspida, capaz de perfurar a carne como fura os dentes de um tubarão.
— Por que você fez aquilo?!
— Você não gostou?
— Claro que eu não gostei! Você quase me matou!
— Não, meu amor, você entendeu errado. Eu te salvei, como te salvei naquele dia que nos conhecemos.
— Você me jogou dentro do tanque dos tubarões! Isso não é me salvar!
— Mas, meu amor, você está novamente segura nos meus braços.
— Vai à merda, Abelardo!
Sentiu-se como se despejado no interior de um vaso sanitário, o que fez que o sentimento de ir à merda soasse literal.
Dois anos e meio se passaram e Abelardo sente-se rumando de acordo com a correnteza de um profundo e escuro oceano. Olha para os lados e não consegue observar algum escombro de navio naufragado para se abrigar. Com a espátula na mão esquerda e com o queijo na direita, vai seguindo a rotineira tarefa de continuar sem saber ao certo para onde. Ao ver o queijo derreter e se espalhar como líquido na chapa quente, vislumbra a água do Grande Rio Bom de Pescar de onde pescou uma sereia. Estava convicto que lá ela ainda praticava seu nado e esperava a companhia de alguém que pudesse viver para sempre ao seu lado.
— Quem me dera ser um peixe.