Reza a lenda, que no centro de uma floresta de cedros existe um portal que liga o mundo mortal ao um outro mundo repleto de criaturas mágicas. Verdade ou não, sacerdotes envoltos pelo poder divino guardam a entrada da floresta e punem todos aqueles que julgam serem habitantes do outro mundo.
Runa, uma jovem curandeira que vivia nos arredores da floresta de cedros, corria com dificuldade, na tentativa de escapar dos sacerdotes divinos. A jovem, que aparentava ter pouco mais de 20 anos, foi acusada de bruxaria por um cavaleiro que lhe viu colher as ervas que cresciam a beira de um pequeno riacho.
Ela sabia dos riscos quando saiu da aldeia para colher as ervas no crepúsculo, mas também sabia que se não fizesse nada o ferimento da sua perna infeccionaria e ela poderia acabar morrendo em agonia. Escolheu arriscar, só não esperava que um cavaleiro errante estaria se refrescando justamente naquela hora da madrugada.
Suas pernas tremiam, a dor excruciante quase a fazia gritar e seus pulmões ardiam por falta de ar. A fuga não durou mais que alguns minutos, logo se viu rodeada por sacerdotes e aldeões, por tochas e enxadas. Sabia que aquele era seu fim. Foi vendada e amarrada, sentiu quando rasgaram seu vestido, expondo suas intimidades.
— Vejam, ela possui a marca do diabo! — Um dos sacerdotes enfiou o dedo na ferida da perna da mulher, que soltou um grito aterrorizante.
— Esta mulher escolheu o caminho das trevas, — continuou o sacerdote — mas graças ao Cavaleiro, ela será punida por seus atos nefastos.
Todos ali vibravam e gritavam. Runa foi amarrada pelo pescoço e puxada de volta para a aldeia, onde receberia o destino de tantas outras que vieram antes dela, a morte pelo fogo.
Quase sem forças, a jovem, que já estava completamente amarrada a uma tora de madeira, apenas esperando seu doloroso fim, fez uma última tentativa de sobrevivência e rogou para qualquer entidade que pudesse lhe ouvir.
“Não temo a morte, mas me recuso a morrer desta forma! Ofereço minha alma, faça o que quiser comigo, mas não me deixe morrer assim! ”
Se sentiu ridícula por conversar com algo que ela nem mesmo acreditava que pudesse existir, mas preferiu focar em sua súplica do que no fogo que logo lhe destruiria. Apegou-se a sua oração com unhas e dentes e, quando o fogo estava prestes a consumir seu ser, uma forte ventania tomou conta da pequena praça da aldeia, apagando o fogo de imediato. Runa sentiu o nó das cordas que prendiam suas mãos afrouxando e ouviu uma voz feminina sussurrar no seu ouvido:
— Corra.
Tomada por um impulso que não saberia como explicar, a curandeira usou toda força que lhe restou para correr. Os sacerdotes nada puderam fazer, pois o vento parecia lhes atacar. Runa, mesmo mancando e muito machucada, correu para a floresta de cedros, pois sabia que ninguém ousaria lhe seguir por aquele caminho. Ela só parou quando a terra foi substituída por água e a mesma voz que lhe mandou correr, chamou seu nome.
— Tenho grandes planos para ti, pobre alma amaldiçoada. Não temas, não te farei mal algum. — A voz vinha de uma grande massa aquática em formato de esfera, que flutuava no centro do lago.
— Quem é você? Onde estou? Minhas roupas... A minha perna. — Runa percebeu que sua perna não doía mais e que agora estava usando um vestido tão branco quanto as nuvens refletidas na água.
— Esta é apenas uma pequena amostra do meu poder, Runa. Você me chamou e aqui estou!
— Então o outro mundo existe de fato? Eu estou aqui por ter oferecido minha alma?
— Sim. Agora tua alma me pertence e eu decidi que farei de ti a minha escrivã. Irás registrar tudo que eu te disser e farás tudo que eu mandar, sem questionar.
— Então eu tive a vida salva e só preciso escrever? Olha, gostei. O que fazemos agora? Cuspimos na mão e selamos o pacto ou o quê?
A divindade não podia negar que gostava da insolência humana. A jovem foi humilhada por seus iguais, quase morreu queimada, sofreu de inúmeras formas e ainda assim conseguia ser animada e descontraída na frente de um ser divino, era realmente intrigante.
— Antes, preciso explicar as regras. Runa está morta, ela foi queimada na fogueira, como estava escrito. Quem está na minha frente agora é uma bruxa, vidente e escrivã, que precisa de um novo nome. Nunca deixes que saibam o teu verdadeiro, ou podes morrer neste mundo também.
— Aceito de bom grado e mudo o que for preciso.
Um feche branco de luz desceu dos céus e atingiu o corpo de Runa. Daquele momento em diante, a garota acusada de bruxaria seria a peça chave para os próximos movimentos da Deusa Sabrina, a mais poderosa dente as dimenssões.
Ao acordar, a nova bruxa se viu dentro de uma cabana de madeira, iluminada por umas poucas velas espalhadas. Estava deitada em uma pequena cama feita de palha, ao seu lado havia um castiçal, alguns livros empilhados, um tinteiro e uma pena. Ela levantou e olhou ao redor, as paredes estavam vazias e o lugar não era muito grande. Fora sua cama, havia um pequeno balcão de madeira, com algumas panelas e frutas, uma lareira e uma mesa com duas cadeiras. Olhando mais de perto, percebeu que havia algo escrito no baú de carvalho que ficava nos pés de sua cama.
— Mama Hudin? Oudin? É difícil de entender! Será que é meu novo nome?
Suas mãos percorreram a madeira do baú, em um gesto de carinho. Mama Oudin sabia que não era a personagem principal daquela nova história, mas algo lhe dizia que seu papel teria grande impacto no desenvolvimento dela.