Bem no meio da rua Atwood, há uma enorme construção trancada por cinco portões, cada portão, com sete cadeados entre si transpassados. As crianças da vizinhança amam pensar que aquela casa guarda uma fera, um monstro diabólico com três pernas e uma língua de fogo ardente... Os adolescentes, sonham em explorar por lá... Pensam que deve estar abandonada, pois algum dia, com certeza já foi bonita, no entanto hoje, aqueles muros vermelhos e descascados, aqueles portões todos enferrujados e o jardim possuído por um marrom predominante e arvorezinhas rasteiras, dão a impressão de que o lugar morreu, ou, de que alguém morreu ali.
Vários já tentaram se aventurar, mas é impossível, até mesmo para o mais malandro, adentrar todos os portões.
Os adultos passam ali na frente, com a mesma sensação de quando avistaram o casarão pela primeira vez, em suas infâncias... Aquele lugar sempre fora o mesmo: trancado, enferrujado, armazenado em uma gaveta bem empoeirada do tempo... Ninguém se lembra ao certo de ver alguém saindo de lá de dentro, e não chegava correio, não chegavam contas de água, luz ou telefone, nenhum fio de energia estava conectado à construção, o lugar aparentava ser meio maldito, mas disto, ninguém sabia ao certo, porém, todos com certeza podiam sentir...
Já os idosos, se lembram de como aquela mansão era em meados dos anos 50. Se hoje era a mais assustadora do bairro, nos anos de ouro, ela era a mais sintuosa, brilhante e moderna mansão de todas! Os jardins eram verdes e frescos, os portões aparentavam ser de ouro! Limousines e celebridades viviam entrando e saindo, parecia o paraíso em meio ao lixo... Se lembram também de que, uma atriz muito famosa morava naquela rua e, que o aluguel se tornou bem caro ali na região, apenas por causa desta tal atriz, da qual ninguém nunca mais ouvira falar desde os anos 80... Morreu? Se mudou? Nem a mais fofoqueira das velhas, podia confirmar a história...
Mas afinal, o que aqueles muros empregnados de musgo guardavam dentro?
Os chinelos de Miriam Ventura, se arrastavam apressados pelos azuleijos da cozinha... Todo o pão havia acabado... Mas... E agora? Como ela sairia de casa, meu Deus do céu! Ainda estava de dia!
Crianças e ladrões na rua... Todos observando por todos os lados! Iam assaltar a casa! Com certeza iriam roubar os Globos de Ouro, as Palmas de Ouro do Cannes de 1966! OS Cesars, Kraftas... Oh não... Iriam roubas as jóias... Ah não, as jóias não... Respira Miriam, respira!
Mas eles vão te descobrir, Miriam, vão descobrir a estrela que você é, vão invadir sua mansão magnífica, vão te assaltar e te estuprar bem na sua cama, e depois... Depois de roubarem todas as riquezas, vão reduzir a casa às cinzas!
Não!!! Impensável... O pão pode esperar!
Os dias foram se passando e o leite acabou, todos os legumes também, e também acabou a carne, a água tinha gosto de lodo... Ela precisava ir às compras, mas SEMPRE ESTAVA CLARO DEMAIS!!!
Inferno!!!
Sempre estava tão claro, e ela estava com tanta fome... Sua diabete estava altíssima, e as varizes roxas e saltadas de suas pernas doíam tanto... Tanto...
"Pestes!" - ela dizia sempre que ouvia algum riso de criança.
"Malditos! " - toda vez que um carro cantava pneu na rua.
"ENDEMONIADOS!!!" - toda vez que algum adolescente gritava.
Todos são demônios! Todos eles maus! Maus, maus!!!
Ela arrastava seus chinelos o dia todo para tapar algum buraco imaginário na casa, com camadas e camadas de cimento, logo em seguida, ia apressadamente trancar um cadeado já trancado, conferir pela vigésima vez se todos os portões, portas, cadeados, trancas e alarmes estavam funcionando normalmente...
Miriam tinha 85 anos, mas não conseguia se lembrar com amor de como conseguiu tudo o que achava que tinha hoje em dia, se lembra de ser uma famosa atriz mirim e... Tudo aconteceu tão rápido, que quando ela tinha 17 anos, já era uma das atrizes mais famosas do país, ganhava tanto dinheiro, que mal sabia aonde ia guardar, mas então... Para onde foi a vida?
Consequentemente, dia após dia, a comida, os remédios, a água e a paciência iam se esgotando... Tudo sufocava e... De vez em quando, ela olhava por entre os buracos das grades internas... Beeem escondidinha atrás da cortina e... Oh... Ela contemplava o Sol... As nuvens e... O ar que passava ali, tão brincalhão... Fez que ia sorrir de lado, mas então, voltou a si. Ela precisava se manter segura, manter sua casa segura... Afinal, aqueles marginais estavam à solta!!!
Mais do que nunca, precisava reabastecer agora... Não que antes, os suprimentos não houvessem acabado... Sempre que necessitava de algo, ela saía de madrugada sem ninguém suspeitar, ia vestida de trapos, escondida em cada sombra, se encolhendo como uma rata, até encontrar uma loja de conveniencia aberta e então, ali ela fazia suas compras, saía com dezenas de sacolas lotadas, e... Ia andando aos poucos até em casa, e com as sacolas pesadas em seus braços fraquinhos que já estavam sendo cortados pelas sacolas plásticas, ela abria as dez mil trancas e, eventualmente, uma sacola ou outra rasgava e as compras se espalhavam pelo chão, mas Miriam não tinha tempo para perder com comida, deixava tudo ali mesmo, antes roubassem a comida, do que as pérolas, os quadros... Deus me livre se descobrirem que ali, naquele bairro nada popular, morava uma atriz famosa! Iam massacrá-la... Não, não... Melhor assim.
O medo era tanto, que seus ossos de 85 anos nem se incomodavam mais em trancar e arrastar tantas portas pesadas e enferrujadas - tudo muito rápido, rápido comobum acidente automobilístico, e, de tanto afobamento para entrar logo na sala blindada, as sacolas iam rasgando, Miriam se prendia e se machuva nas paredes mal rebocadas... Luta, dor, sangue, sofrimento, desce um, dois, quatro lances de escada, exausta, zonza, suando, olhos agitados, medo... Senhor... Tanto medo, no entanto, juntava forcas para abrir a última porta, e quando ela colocava os pés para dentro da sala... Ufa... Estava em casa.
Seus hobbies eram passear pelos corredores lotados de luxo, pilhas e pilhas de roupas caras (todas comidas por traças), e prêmios empoeirados, e salões de baile, com fantasmas valsando, e escadarias mil todas assombradas... Mas ali, era sua rica e suntuosa casa, não? E alguém podia entrar ali e acabar com tudo, não?
Ela de forma alguma poderia facilitar para os bandidos! Dar assim tudo de mão beijada!
Precisava continuar se trancando, mantendo todo aquele ouro bem escondido! Se o sol adentrasse as paredes, ele seria expulso! Qualquer mosca, qualquer riso, barulho, aranha... Todos expulsos! Não era de fazer caridade... Todos eram tão, mais tão aproveitadores!
A idade a deixava cada vez mais persecutória, para ela, todos estavam contra ela e que, ali dentro de casa, quentinha, comendo tudo enlatado, ela estaria segura!
Mas tinha dias, ah... Aqueles dias, que o sangue fervia, e algo na casa a expulsava. Os corredores uivavam, as roupas se espalhavam por cada cômodo, como se fossem espíritos horríveis, a casa ficava fria, tudo rangia, tudo fedia, a pele dela, se tornava escama, seus cabelos caíam e a garganta, coçava, raspava... Ardia com ódio estridente!
Tão forte!
Tão real e letal quanto uma bomba relógio!
"SOCORRRO!!!!" - tem alguém na minha casa! "NINGUÉM VAI ROUBAR NADA!!! É TUDO MEU!!!" - ela berrava como um monstro, saía pelos corredores com sua espingarda e BOOM, explodia pratos, vasos, móveis, lustres.
E a casa, respondia de volta "Miriam... Você é a única aberração!".
"SAIAM DA MINHA CASA, EU VOU MATAR VOCÊS!!! EU SOU RICA!!! O PRESIDENTE NÃO VAI ME PRENDER!!!" - e BOOM, atirava em mais alguma coisa.
Nestes pequenos momentos de "lucidez", a mansão desaparecia, como se nunca tivesse sequer estado ali, e tudo que ela via eram caixas e mais caixas empilhadas nos largos corredores negros, além dos ratos que transitavam por toda parte... E... Santo Deus! Pele enrugada??? Pés quase necrosados? Cabelos brancos???
Não!!!
Não podia ser... Ela era Miriam Ventura! A mais bela atriz! A mais rica, a mais talentosa! São tantos prêmios que ela tem, que nem sabe dizer de cor por qual filme ela foi nomeada!
"Não... Não... É você, sua impostora! Bruxa! Você roubou todo meu dinheiro!!! Você destruiu minha casa!" - enquanto seu coração parecia colidir com os outros órgãos internos, ela acusava seu reflexo, naquele espelho antigo rachado, do chão ao teto.
O reflexo, por pirraça, imitava cada movimento.
"Palhaça! Como ousa me desafiar! Eu mato você!" - ela apontou a espingarda para o espelho.
Então... Surpresa, o reflexo fez o mesmo.
Miriam se apavarou, urinou nas calças, arregalou tanto os olhos que eles quase pularam para fora.
"SOCORRO! ESSA BRUXA ESTÁ ARMADA!!!" - berrou tão alto, que seus dentes todos se abalaram.
Mas, Miriam... Não podemos deixar esta ladra vencer, mata ela Miriam! Mata ela!
"Eu vou matar você! Você destruiu minha vida! Você destruiu minha casa!!!" - apontou a arma para sua própria cabeça - "Vamos ver se você vai me pegar agora, vagabunda!" - ela gargalhou como mil beberrões, puxou o gatilho e...
BOOM...!
A ladra, a vagabunda, a assassina, a bruxa, a destruidora de lares se foi pelos ares e, no chão, ainda agonizando, Miriam dormiu para sempre, contemplando sua mais nobre vitória, enfim, o mundo estava calmo.
Tudo em seu devido lugar...